A tempestade chegou com muita força, abastecida com um combustível aditivado. Ela incorporava um vento forte, portador de um aguaceiro que encharcava a alma da Terra e insistia em levar sua maquiagem para o mar. Tudo aquilo, somado, fazia tremer até a passarela, que agora não atravessava pedestres de um lado ao outro da rodovia; ela desejava se esconder e não tinha culpa de ser umas das primeiras coisas atingidas pela água enviada do céu sem escala.
Naquele dia, a revista onde Fábio trabalhava como jornalista precisou encerrar mais cedo suas atividades. É que um poste não fez cerimônia quando decidiu se jogar sobre o transformador que garantia energia elétrica para aquela região.
Leilah ia esticar-se no divã do psiquiatra freudiano e começar os seus relatos, mas a escuridão quase não permitiu isso. De fato não teria permitido, se o profissional não se desse conta, de repente, de que falar no escuro sobre as coisas desconhecidas de si mesma poderia tornar o relato mais espontâneo e, por isso, mais verdadeiro. Afinal, o relato estaria livre dos floreios e de toda edição que gostamos de fazer quando frente a frente com o interlocutor, seja ele um profissional, um clérigo, um amigo, um policial ou a pessoa amada. Há quem diga que a relação de Leilah com os homens, que a enxergavam apenas como alguém do sexo feminino, não teria sido das mais construtivas para a sua identidade de mulher.
Por pouco, a foto realista de um machado, que se agarrava a um pequeno prego na parede do consultório, não se jogou lá de cima. Esse incidente traria presságios desagradáveis para Leilah, que naquelas condições estranharia pouco o fato eventual de um desabamento, quem sabe atingindo-a de maneira violenta.
Lá fora, os bombeiros de plantão brigavam contra as forças da natureza que impunham um clima de terror à população.
Havia água transformando calçadas em rios perigosos, sem direito a âncoras ou atracadores.
Havia carros sendo levados como se leva brinquedos esquecidos na rua.
Havia uma espécie de furacão. Sua melodia tenebrosa desejava fazer uma varredura completa e carregar, para bem longe, tudo aquilo que um dia se apoiou na certeza de suprema resistência a qualquer fenômeno inventado pela natureza.
Havia pessoas tentando atravessar de um lado para outro da rua, e seres vivos cujos corpos jamais seriam encontrados, porque a água estava com muita pressa. A chuva molhava a terra seca e acabava com a poeira, mas reduzindo o débito desse crédito, o saldo ficava no vermelho. O museólogo se lembrou de uma pintura, retrato fiel desenhado de um aguaceiro semelhante, ocorrido três séculos atrás, em algum lugar da Europa.
Uma mulher, com rosto fino e pele cor de canela, jogou uma extremidade do seu casaco para que a criança em apuros se segurasse e pudesse ser resgatada com vida, sem saber se ela mesma iria sobreviver a todas aquelas forças, que naquele fim de tarde se orquestraram para bater de frente com tudo e com todos.
Na situação extrema, que envolvia risco de morte para a mulher e a menina, encontraram uma força até então desconhecida e trabalharam em conjunto para tentar vencer todos os desafios propostos pela situação amedrontadora.
Depois, juntas, conseguiram chegar à mãe da menina, tomada de pânico enquanto media forças com o caos à sua volta. Houve abraços molhados. Houve acolhida feita de banho apressado, com água da torneira aquecida na panela, e uma caneca de Submarino, receita aprendida com a sogra. Ela adorava mergulhar uma barra de chocolate em leite fervendo e conseguia ter a paciência necessária para esperar que os dois ingredientes, chocolate e leite, se tornassem um só corpo e uma só alma.
O editor da revista onde Fábio já havia produzido boas reportagens sobre a fúria da natureza em terras distantes bem que se esforçou para persuadi-lo a esperar o tempo necessário até que a natureza assinasse um tratado de paz e ele pudesse enfim retornar. Ele seria uma nova edição de Noé no dilúvio que enfim se desfez e permitiu que uma ave ganhasse os céus, carregando no bico um ramo, a mídia pronta para comunicar ao planeta a possibilidade concreta de uma vida nova.
Mas ele não se deixou influenciar pelas palavras bem calculadas do chefe. Apenas abriu a última porta da Redação, ganhou a escada e viajou cinco andares até chegar à calçada. Desejava colher material – depoimentos reais e muito vivos – para a grande matéria da sua vida. Aquele profissional que amava a ordem e evitava olhar certas peças da casa para não perceber que algumas coisas estavam fora de lugar, agora não conseguia aceitar tanta desordem ao seu redor.
Por baixo da calça jeans, Fábio vestia apenas a sunga, porque depois do expediente tocaria direto para a praia. Somados, a atitude decidida e o corpo musculoso fizeram uma boa parceria, e Fábio avançou o quanto pode. Sempre arqueando a sobrancelha, o jornalista falou com jovens, velhos, adolescentes assustados, mulheres vestidas de terror e clicou muitas vezes para eternizar imagens assustadoras. Falou com o padre. Também ouviu um vereador, sem partido, que acompanhava com interesse o desenrolar da situação, de onde tiraria subsídios necessários para seu próximo discurso na tribuna em favor de mais verbas para resolver problemas graves da cidade, que se encharcava até mesmo com chuvas rotineiras e normais.
Depois Fábio subiu em um muro. E com voz de radialista, lá de cima procurava orientar as pessoas, incluindo-se aí um repórter fotográfico. O profissional colheria as imagens mais fortes para ilustrar um texto denso e, ao mesmo tempo, suavizado pela escolha feliz das palavras mais adequadas para informar sem espalhar uma nova onda de terror, tão necessária naquele momento quanto uma boa dor de dente.
Leilah deixou de lado o divã e as conclusões do psiquiatra sobre questões ainda sem solução e enfrentou o problema de caminhar até onde estava Fábio. Tão logo passou pela porta de ferro e ganhou a calçada, sua túnica foi tingida de água suja de toda espécie de sujeira, transformando em marrom sua vestimenta branca. Ela foi se juntar a Fábio, tocando com ele uma força-tarefa. Apenas deu tempo para dizer-lhe que invejava seu cabelo afro, porque até num momento como aquele era mais prático que o longo e descolorido que ela ostentava.
Na hora certa, ao invés da pomba diluviana, uma pomba contemporânea pousou no telhado de um prédio e assistiu ao movimento das pessoas, agora sob alguns raios tímidos de sol, e a natureza cansada sem mais água ou vento para se impor a toda forma de existência.
Cada um a seu modo, todos deixariam a arca feita de prédios e reconstruiriam a vida. Quanto à reportagem criada e escrita por Fábio, feito um novo relato bíblico desenhado por um artesão refinado, ela teria a participação direta de Leilah, o feminino e o masculino anunciando que, de novo, a história humana estava grávida de muitas estradas.
Rubens Marchioni é palestrante, produtor de conteúdo e escritor. Autor de livros como A conquista e Escrita criativa. Da ideia ao texto. [email protected]. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao