Em outubro de 1517, Martinho Luder (1483-1546), nascido em Eisleben, Saxônia eleitoral, no seio de uma família dedicada à mineração, estava prestes a completar 34 anos de idade. O próprio Martinho encarregou-se de modificar a escrita do nome de sua família, empregando em suas cartas eventualmente “Luther” ou a forma latina, “Lutherus”. Após 1518, em várias cartas ele assinou “Eleutherius”, forma latinizada do grego “Eleutherios” (“liberto”). Monge agostiniano desde 1505, doutor em Teologia desde 1512, contrariara as expectativas do pai, que o queria jurista. O historiador Lucien Febvre, na biografia que escreveu sobre Lutero, caracterizou-o como “uma alma inquieta”.
Não eram poucas as almas religiosamente inquietas no século XVI. Nem todas tomavam a decisão radical de optar pela vida monástica. Lutero o fez, segundo ele, esperançoso de servir a Deus no mosteiro agostiniano de Erfurt e de encontrar, na disciplina do claustro, o caminho de sua redenção espiritual. Na ordem agostiniana, Lutero achou apoio no vigário-geral, Johann von Staupitz (1460-1524). Confessor de Lutero, Staupitz viu no trabalho intelectual uma saída para as turbações espirituais daquele monge. Foi por sua orientação que Lutero dedicou-se ao estudo da Teologia; Staupitz direcionou-o, em 1511, para Wittenberg, cuja universidade oferecia um campo de atuação bastante promissor e onde Lutero já havia estudado entre os anos de 1508 e 1509.
Wittenberg precisava de Lutero, tanto quanto Lutero precisava de um lugar ao qual dedicar-se. A universidade fora fundada em 1502 pelo príncipe eleitor da Saxônia Frederico III de Wettin (1463-1525). Frederico, cognominado “o Sábio”, vivia em disputa com seu primo Georg (1471-1539), que herdara a outra metade da Saxônia (conhecida como Saxônia ducal ou Saxônia albertina), uma herança que incluía a importante cidade universitária de Leipzig. Em comparação com outras regiões germânicas, sobretudo com as prósperas cidades comerciais do sul e do sudoeste, a Saxônia eleitoral contava com recursos, por conta de sua rica mineração (prata e cobre), mas não com sofisticação. A universidade, parte dos planos do príncipe para trazer renome à cidade, era ainda um empreendimento incipiente, para o qual Frederico se serviu das estruturas e do clero do mosteiro agostiniano existente na cidade. Por conta da formação do corpo docente, era uma instituição majoritariamente escolástica.
Numa universidade de renome, talvez Lutero passasse despercebido. Wittenberg, contudo, caiu-lhe como uma luva. Ele direcionara seus estudos teológicos para o campo da erudição bíblica, habilitando-se em grego e hebraico. Obtido o doutorado, Lutero dedicou-se à exposição das Escrituras: entre os anos de 1513 e 1518, suas aulas versaram sobre os Salmos, sobre as Cartas aos Romanos e aos Gálatas e sobre a Carta aos Hebreus. O texto era lido nos idiomas originais e comentado em alemão pelo mestre, enquanto os estudantes faziam extensas anotações em seus exemplares latinos da Bíblia.
Wittenberg possibilitou a Lutero o estabelecimento de importantes relações sociais. Isso teria sido mais difícil numa cidade maior, dotada de uma universidade mais opulenta. Em Wittenberg, foi possível ao recém-doutor imiscuir-se nas principais redes locais, para além da própria Universidade: juristas, funcionários civis, impressores, comerciantes e artistas como Lucas Cranach, o Velho (1472-1553), um dos cidadãos mais influentes de Wittenberg. A ele devemos importantes retratos de Lutero feitos a partir do modelo vivo.
Esses contatos, e outros que Lutero manteve fora de Wittenberg, foram decisivos para ele quando sua separação da Igreja de Roma se consumou. Lutero vivia numa sociedade intensamente corporativa, na qual a sobrevivência dependia da inserção em redes de relações. A ordem agostiniana representou a primeira dessas redes; quando chegou a hora do rompimento com a ordem que o acolhera quase duas décadas antes, Lutero precisou de todas as relações que conseguira construir. Parte importante das relações externas a Wittenberg foram tecidas a partir de 1515, quando Lutero foi nomeado vigário distrital de sua ordem, com responsabilidade sobre 11 mosteiros.
Além de centro minerador e universitário, Wittenberg era um centro de devoção. O príncipe Frederico possuía uma impressionante coleção de relíquias, visitada por peregrinos cujas contribuições financeiras representavam parte importante dos rendimentos empregados na manutenção da Universidade. “Relíquias”, na tradição católica, eram objetos que teriam tido contato com algum santo reconhecido pela Igreja, podendo ser um artefato de posse pessoal (como um pedaço de roupa) ou mesmo um fragmento de seu corpo. A Igreja, que se entendia como administradora da graça de Deus no tocante ao perdão dos pecados, concedia indulgência (ou perdão, com cancelamento de determinado número de dias que o pecador deveria permanecer no purgatório) em função de cada relíquia da coleção que fosse contemplada pelo peregrino. Com isso, não interessava ao príncipe que em seu território fossem oferecidas, também, as indulgências papais, documentos com a mesma finalidade que eram colocados à venda periodicamente por representantes autorizados por Roma. Por essa razão, Frederico proibira, em seus domínios, a venda desses documentos.
Essa dimensão devocional emprestava a Wittenberg um dinamismo especial. A pequena cidade ganhava cores mais interessantes em função do gerenciamento desse centro de devoção, com as igrejas embelezadas por obras de artistas importantes e a Universidade dotada de novos prédios.
Mas Wittenberg nunca chegaria a rivalizar com cidades como Augsburgo ou Nuremberg em termos de sofisticação e de liberdades políticas. Essas cidades, enriquecidas por causa do comércio, tinham estatuto de cidades independentes: submetidas diretamente ao imperador, podiam fazer suas próprias leis e exercer a justiça; seus Conselhos municipais eram compostos por centenas de membros, representantes dos diferentes grêmios e associações da cidade, e tinham assento na Dieta imperial. Já em Wittenberg, as decisões dependiam apenas do príncipe-eleitor, ao qual o Conselho municipal se reportava com pouquíssima autonomia. Esses elementos de natureza política serão importantes para compreendermos
alguns desdobramentos da reforma empreendida por Lutero.
Rui Luis Rodrigues é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. É professor de História Moderna no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde dirige o Modernitas – Núcleo de Estudos em História Moderna. É especialista no Humanismo renascentista e nas relações entre religião e política nos primeiros séculos da Época Moderna.