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A promessa da vida americana | Flávio Limoncic

Nas caixas 1, 2 e 3 do nosso supermercado, trabalham moças hispânicas, todas na casa dos 20 anos. Mal devem ter terminado o ensino médio. Na caixa 4, trabalha Mr. Petersen, um urso nórdico de uns 60 anos, quase 2 metros de altura e mãos tão descomunais como as de lenhador de conto de fadas. A família de Mr. Petersen deve estar em Michigan há mais de um século. Seus avós provavelmente foram fazendeiros, seu pai, trabalhador da Ford. Talvez ele também tenha apenas ensino médio. Imagino que se sinta um loser trabalhando ao lado de jovens cujos horizontes na vida não vão muito além da supervisão do setor de laticínios do Whole Foods, o supermercado dos que combatem o aquecimento global comendo saladinhas orgânicas.

Mas quando ele próprio era jovem…  

Nos anos 60, os horizontes eram mais generosos pros filhos da classe trabalhadora branca de Michigan. A dele pode ter sido assim: como o pai, conseguiu emprego na Ford e, graças ao sindicato, ganhava ótimo salário, com o qual comprou carro (em cujo banco de trás transou pela primeira vez com a high-school sweetheart) e casa, onde foi viver com a high-school sweetheart após a cerimônia de casamento no salão nobre do sindicato. Aos sábados, jogava boliche com outros trabalhadores da linha-de-montagem, todos eles amigos desde os tempos de escola, mas não descuidava da família. Nos domingos menos congelantes, grelhava churrascos de hambúrguer e uma vez por ano levava pais, sogros, a sweetheart e os 4 filhos pra Paradise (sic), Michigan, pra tomar banho no lago. Aí vieram os japoneses, a Kia, os computadores, os robôs, e ele acabou demitido. Virou “associado” numa loja de departamentos que estava implantando relações de trabalho modernas. A associação funcionava assim: a cadeia ganhava rios de dinheiro enquanto o riachinho dele secava. Com o boom da construção civil, nos anos 90, chamou o cunhado pra entrar com a grana e abriu uma empresa de esquadrias. Ganhou dinheiro, fez hipoteca pra uma casa maior, com piscina e pula-pula pras férias do netos, a sweetheart estalou-lhe um beijo na boca, veio a crise em 2008, perdeu a grana, a casa, a piscina, o pula-pula, o cunhado e a sweetheart, os filhos se separaram das noras, os netos se perderam no mundo e ele acabou caixa de supermercado. 

Mr. Petersen amanhã

Essa pode não ser tintim por tintim a história de Mr. Petersen, mas não é muito diferente da de milhões de americanos sem diploma (cerca de 70%), que há anos vêm perdendo empregos, renda e sonhos.   

A promessa americana era que filhos teriam sempre vidas melhores do que seus pais, mas Mr. Petersen não só já percebeu que seus pais viveram bem melhor do que ele como, também, que sua idade madura é uma droga se comparada à juventude. O que talvez ele não tenha percebido, ou não queira perceber, é que sua velhice vai ser ainda pior. Nosso supermercado tem 20 caixas, mas 16 assumiram a forma de máquinas registradoras informatizadas, operadas pelos próprios consumidores. Daqui a pouco, as 3 moças de origem hispânica devem rodar. Depois, quando as velhinhas que têm dificuldade até pra usar cartão de crédito tiverem morrido, chegará a vez de Mr. Petersen rodar outra vez. Provavelmente, para sempre. 


Conheça o livro Estados Unidos no século XX, do professor Flávio Limoncic

Exemplo de democracia ou esteio da ditadura civil-militar brasileira de 1964? Paraíso da felicidade suburbana ou cenário de vidas alienadas pela lógica da mercadoria? Evidência da superioridade do capitalismo ou pátria de multinacionais exploradoras da gente e das riquezas alheias? Ao longo do século XX, os Estados Unidos ocuparam centralidade nos debates e acontecimentos por todo o planeta. No entanto, eles não são uma coisa ou outra. São uma combinação complexa e quase sempre contraditória desses aspectos. E tudo o que fazem repercute no mundo: da Missão Apollo às bombas sobre Nagasaki e Hiroshima, passando pela sedução de Hollywood e o napalm no Vietnã, a Ku Klux Klan e o movimento pelos direitos civis, o jazz e a música country, gramados suburbanos, Cadillacs, Vale do Silício californiano, fast-food, internet. Este livro apresenta um panorama da história do país que mais contribuiu para moldar o século XX.


Flávio Limoncic é professor de História da América do Departamento de História da Universidade Federal o Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e dos Programas de Pós-Graduação em História Social e do Mestrado Profissional em Ensino de História da mesma instituição.

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