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A PORTA DOS LEÕES | Steven Pressfield

porta_livros-pilha5 de junho de 1967. O Estado de Israel está cercado por inimigos que desejam sua completa extinção. O resto do mundo vira as costas para a jovem nação diante do perigo iminente.
10 de junho de 1967. Os exércitos árabes são rechaçados, suas divisões em solo, eliminadas, suas forças aéreas, destruídas. O ministro da Defesa Moshe Dayan adentra a Cidade Velha de Jerusalém pela Porta dos Leões, para juntar-se aos paraquedistas que libertaram o local mais sagrado do judaísmo: o Muro das Lamentações.
Essa foi uma das mais improváveis e impressionantes vitórias militares da história.
Imerso em centenas de horas de entrevistas com veteranos da guerra, Steven Pressfield conta a história da Guerra dos Seis Dias de modo inédito: pelas vozes de homens e mulheres que lutaram não apenas por suas vidas, mas pela sobrevivência de sua nação e pelos sonhos dos seus ancestrais.

Confira abaixo trechos do livro A Porta dos Leões, de Steven Pressfield.


LIVRO UM
DOIS IRMÃOS

 

Três semanas antes da guerra, fui visitar meu irmão Nechemiah em Jerusalém. Nós dois nascemos lá. Aquela cidade é o nosso lar.

O major Eliezer “Chita” Cohen é piloto e comandante do 124º Esquadrão, primeira e principal formação de helicópteros de Israel.

Nechemiah tinha então 24 anos e era capitão do Sayeret Matkal, as Forças Especiais de Israel. Ao lado de Ehud Barak, o futuro primeiro-ministro, era o soldado mais condecorado do Exército de Israel. Nechemiah havia recebido cinco medalhas por bravura – uma por serviços relevantes e quatro citações do comandante das Forças Armadas.

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Nechemiah Cohen ao lado do helicóptero de seu irmão, Chita, preparando-se para uma operação das Forças Especiais além das fronteiras, em 2 de dezembro de 1965.

Nechemiah tinha sido promovido do posto de tenente havia quatro meses. Foi transferido para a 35ª Brigada de Paraquedistas, uma unidade de elite, onde se tornou comandante de uma companhia, tudo isso para adquirir experiência liderando formações maiores que as equipes de 12 homens das Forças Especiais.

A data de nossa visita foi 15 de maio, Dia da Independência. Minha esposa, Ela, e eu fomos com nossos filhos assistir ao desfile em Jerusalém Ocidental. Nechemiah ligou e nos convidou para ir ao seu posto de comando. “É seguro”, ele disse. “Traga as crianças.”

O posto avançado de Nechemiah ficava em Abu Tor, no meio de uma terra de ninguém. Abu Tor é a colina mais alta ao sul da Cidade Velha. Do local, controlam-se o acesso por terra da Jordânia e os arredores ao sul da Velha Jerusalém.

Nechemiah tinha cerca de cinquenta paraquedistas distribuídos em equipes de quatro ou cinco ao longo da linha do armistício. Ele instalou seu quartel-general num belo casarão de tijolos vermelhos que estava abandonado havia mais de vinte anos, desde os combates de 1948. Ao redor do casarão, havia arame farpado, barricadas e ninhos de metralhadoras. As placas alertavam: “Perigo – Minas”. Era um lugar belíssimo no meio de uma paisagem desoladora.

Descendo a colina, havia postos e fortificações da Legião Árabe. Eram, as tropas de elite do rei Hussein, treinadas pelos britânicos, usando os famosos keffiehs quadriculados nas cores vermelha e branca. Meus filhos ficaram arrepiados ao avistar soldados inimigos tão de perto.

Nechemiah e eu passamos duas horas juntos. Fomos ao telhado plano do casarão. O local se parecia com qualquer outro posto avançado ocupado por jovens soldados – sacas de areia, binóculos potentes, caixas com ração para combate, sacos de dormir empilhados pelos cantos, mochilas dispostas num semicírculo com armas e capacetes à disposição para a ação.

É preciso levar em conta que Nechemiah e eu viemos de uma família muito humilde. Crescemos brincando nos becos, nas ruas secundárias e nas encostas pedregosas de uma cidade que não podíamos chamar de nossa. Jerusalém estava então sob o Mandato Britânico. Não havia Israel. Nós, judeus, não tínhamos um país.

Quando o Estado foi fundado, em 1948, o Exército da Jordânia venceu a batalha por Jerusalém. A Legião Árabe expulsou nossas forças da Cidade Velha e ateou fogo em mais de cinquenta sinagogas, matando todos os judeus que encontrava pela frente.

Nechemiah e eu sabíamos o que estava se passando e sentíamos ódio, mesmo ainda crianças. Quando crescemos, nos tornamos soldados e, depois, oficiais. Paramos de falar como crianças birrentas e começamos a planejar como militares profissionais. Nechemiah é paraquedista, eu sou piloto. A bola está conosco. Temos que fazer o trabalho.

Era assim que encarávamos a situação, Nechemiah e eu, no telhado do casarão, admirando aquela terra de ninguém. Nós dois sabíamos que a guerra estava a caminho. “Você se sente frustrado, irmão”, perguntei, “por estar preso aqui em Jerusalém quando os combates certamente serão no Sinai ou na Síria?”.

Naquele momento, achávamos que a guerra não chegaria à Cidade Sagrada. A Jordânia não arriscaria atacar Israel, temendo ser derrotada. E Israel não podia dar o primeiro passo. O restante do mundo jamais permitiria.

Do telhado, meu irmão e eu avistávamos o bosque de álamos que fica acima do Muro das Lamentações, o local mais sagrado para o nosso povo. As árvores pareciam tão próximas que tínhamos a impressão de quase poder tocá-las, ainda que entre nós houvesse o arame farpado e os postos de combate da Legião Árabe.

“Olhe lá, irmão”, eu disse. “O monte Moriá, onde Abraão amarrou Isaac, à distância de uma cusparada. Ali está a Torre de Davi e o que sobrou do bairro judeu da Cidade Velha. Tudo isso é nosso. O que nos impede de tomar posse, ahuyah?” Usei a palavra árabe para “irmão”, como todos fazíamos em nossa família. “Vamos esperar a permissão das Nações Unidas ou das potências mundiais? Os jordanianos não ocuparam a Cidade Velha porque tinham direito adquirido. Ela nunca fez parte daquele país. Eles a tomaram à força em 1948!”

Perguntei a Nechemiah o que ele achava que os norte-americanos fariam em nosso lugar. O Exército deles ficaria quieto por um único minuto que fosse se uma potência estrangeira ocupasse a avenida Pennsylvania? Os britânicos ficariam impassíveis se uma nação estrangeira se apossasse de uma mísera rua em Londres? O que os russos fariam?

Consigo ouvir a resposta do meu irmão como se ele estivesse aqui bem na minha frente. “Ahuyah”, ele disse, “se a guerra chegar, ela também chegará a Jerusalém. Vamos libertar a Cidade Velha”.

Não acreditei nele. Pensei comigo: “Isso é apenas um sonho”. Todos os alertas de combate naquele tempo eram emitidos contra os egípcios, os sírios e os iraquianos. Nunca contra os jordanianos.

“Vai acontecer”, meu irmão disse. “Você vai ver.”

Nós nos abraçamos e nos despedimos. Foi a última vez que vi Nechemiah vivo.

Meu irmão caçula – sou oito anos mais velho – recebeu ordens para juntar-se com sua companhia à 35ª Brigada de Paraquedistas, estacionada ao longo da fronteira com o Egito. Ele foi morto em Gaza, no primeiro dia da guerra.

Meu esquadrão de helicópteros foi designado naquele dia para executar missões de evacuação no norte do Sinai e na Faixa de Gaza. Escutei o chamado de emergência pelo rádio do meu esquadrão: “Baixas em massa próximo à cidade de Gaza”.

Enviei um dos meus pilotos, Reuven Levy, para cuidar da evacuação. Nunca me ocorreu que meu irmão pudesse estar entre os mortos. Ele era muito bom, muito esperto. Nada poderia acontecer a ele.

Levy recebeu ordens de um oficial no local para não me contar sobre a morte de Nechemiah. “Chita é um comandante de esquadrão crucial”, disseram a Levy. “A nação precisa dele operando em plena capacidade.”

Então, voei noite e dia em missões durante a guerra, em Gaza e no Sinai, na Cisjordânia e em Jerusalém e sobre as colinas de Golã, sem saber o que tinha acontecido ao meu irmão.

No último dia, enquanto Israel inteiro rumava à Jerusalém libertada para tocar as pedras e admirar o milagre que muitos acreditavam que nunca iria ocorrer, eu estava no escritório do comando da base aérea de Tel Nof sendo finalmente informado de que meu irmão não havia sobrevivido para testemunhar aquilo. Naquela hora meu mundo acabou.

 

LIVRO OITO

SE EU ME ESQUECER DE TI, Ó JERUSALÉM

 

(…)

Quando nós, da Companhia A, adentramos a Porta dos Leões na manhã de 7 de junho, nosso objetivo, apesar dos tiroteios em curso e do perigo dos franco-atiradores inimigos, era unicamente chegar ao Muro. Moshe Stempel, meu caro amigo e comandante-adjunto da nossa brigada, se uniu a nós. Juntos, varremos o monte do Templo e passamos pela Porta Marroquina. Estávamos nos degraus acima do Muro, mas ainda não tínhamos descido para nos apossar dele.

Stempel ordenou que eu enviasse um dos meus homens para lá, enquanto o restante de nós voltou com ele tentando encontrar algum local acima do Muro onde pudéssemos hastear a bandeira de Israel que passei um dia inteiro, uma noite e mais um dia carregando comigo. Escolhi um jovem sargento chamado Dov Gruner.

Ele não foi o primeiro a ter esse nome. O Dov Gruner original, em homenagem a quem o nosso recebeu seu nome, era um combatente do Irgun Zvai Leumi, a organização paramilitar clandestina que combateu os britânicos durante o Mandato, antes de Israel conquistar sua soberania.

Os soldados ingleses capturaram esse primeiro Dov Gruner e o julgaram por participar de um ataque ao posto policial de Ramat Gan. Ele foi condenado à morte por enforcamento. Na hora final lhe ofereceram uma comutação de pena, se ele admitisse a culpa. Dov Gruner não aceitou.

Recusou-se a se defender, afirmando que se o fizesse estaria reconhecendo a legitimidade do tribunal britânico. No último dia de sua vida, Dov Gruner escreveu ao seu comandante, Menachem Begin, e aos seus camaradas do Irgun:

Claro que quero viver. Quem não quer? Eu também poderia ter dito: “Deixemos o futuro para depois…”. Poderia até mesmo deixar o país de vez para viver uma vida mais segura nos Estados Unidos, mas isso não me satisfaria nem como judeu, nem como sionista.

Há muitas escolas de pensamento que dizem como um judeu deve escolher seu modo de vida. Uma é a dos assimilacionistas, que renunciaram ao seu judaísmo. Existe também outro modo, a maneira dos que se chamam de sionistas – o caminho da negociação e do comprometimento […].

Para mim, a única maneira que parece correta é a do Irgun Zvai Leumi, o caminho da coragem e da ousadia sem renunciar a uma única polegada da nossa terra natal […].

Escrevo estas linhas enquanto aguardo o carrasco. Não é um momento em que eu possa mentir, e juro que, se tivesse que começar minha vida novamente, escolheria o mesmo caminho, não importam as consequências que eu viesse a sofrer.

Dov Gruner foi enforcado na prisão de Acre em 16 de abril de 1947. Como a mulher do seu irmão havia recentemente dado à luz um filho, ele foi chamado de Dov.

Esse garoto cresceu e se tornou nosso Dov.

Moshe Stempel certa vez foi questionado por um jornalista: “Por que você escolheu Dov Gruner para ser o primeiro a chegar ao Muro?”.

“Não fui eu”, respondeu Stempel. “Foi a história.”

Moshe Stempel foi morto um ano depois, no vale do Jordão, perseguindo terroristas palestinos que tinham cruzado a fronteira. Foi atingido na primeira troca de tiros, mas continuou a liderar a perseguição, sob fogo, até ser morto. Anos antes, em 1955, ele havia recebido a Itur HaOz pela bravura que demonstrou numa operação próximo a Khan Younis, na qual foi ferido, mas continuou a lutar até a missão ser completada, como ocorreu novamente na ocasião em que foi morto.

Stempel montou a nossa brigada. Ele quem a construiu, ninguém mais. Tinha o peito forte como o de um touro e punhos grossos como a maioria dos braços de homens.

Quando fixamos a bandeira de Israel na grade acima do Muro, nosso pequeno grupo se pôs de pé e entoou o hino nacional de Israel. Um fotógrafo, Eli Landau, registrou o momento histórico com sua câmera. Stempel me puxou para me colocar entre ele e as lentes. Escondeu seu rosto para que filme nenhum capturasse suas lágrimas.

Stempel segurou meu braço com seu punho de ferro. Por duas vezes, tentou dizer alguma coisa, mas sua voz falhou. Puxou-me para tão perto dele que as bordas dos nossos capacetes ficaram roçando uma na outra.

“Zamosh!”, disse Stempel com tanta emoção que ainda consigo ouvir sua voz, embora ele tenha dito isso há quase 50 anos. “Zamosh, se meu avô, se meu bisavô, se algum membro da minha família morto nos pogroms e nos campos de concentração… Se eles soubessem, de alguma maneira, nem que fosse por um segundo, que eu, neto deles, estaria aqui nesta hora, neste lugar, calçando as botas vermelhas dos paraquedistas israelenses… Se soubessem disso, Zamosh, por um breve instante que fosse, enfrentariam a morte mil vezes como se nada fosse.”

Stempel agarrou meu braço como se nunca mais fosse largá-lo.

“Nunca deixaremos esse lugar, nunca”, ele disse. “Nunca desistiremos dele. Nunca.”