NO TRAJETO até o hotel fazenda onde Saldanha e Paula passariam o final de semana, o casal encontrou uma enorme pedra, grande o suficiente para obstruir o caminho estreito daquela estrada pouco frequentada. Já era noite, quase um prolongamento da tarde.
Saldanha, o corretor de imóveis agora no papel de motorista, pisou seco e, num golpe, parou a velha caminhonete com placa de colecionador. Blasfemou e jogou o chapéu branco no chão. A resistência do volante passou por um teste rigoroso, mas sobreviveu ao murro que levou de Saldanha, ele e suas mãos enormes. Seu humor sofria variações repentinas, indo da terra até as nuvens em zero segundo. Ele assoviava quando estava irritado. Assoviava quando estava calmo. Assoviava quando não sabia exatamente o que sentia. Assoviava para quebrar o silêncio interior, feito de ruídos. Dessa vez não foi diferente.
– Paula, você não sabia dessa pedra?!
– Não! Como eu ia adivinhar que tinha uma pedra desse tamanho no caminho? – perguntou ela, a mão direita colocada no rosto estreito que acomodava sobrancelhas finas, sobre olhos rígidos e bem vividos.
– Ninguém disse que era pra adivinhar. Quem foi que falou em adivinhar?! – contrariou Saldanha, nada gentil.
– Só faltou você falar.
– Não foi você que ligou a televisão de manhã? – retrucou ele.
– Sim, fui eu. Mas ninguém falou nada sobre pedra nessa estradinha de merda – disse Paula, ajeitando os cabelos compridos de cor amarelada. – Isso parece um túmulo!
– E agora, Paula, o que a gente faz? – perguntou Saldanha. Há quem diga que ele falava tanto para driblar um antigo medo de ficar mudo. Estava em pé, com as mãos na cintura.
– Não sei o que a gente faz. Não sei. Pelo visto a pedra desmoronou agora.
– Vamos fazer uma gambiarra aí na frente e voltar – disse ele, bufando.
– Fazer uma gambiarra e voltar?! É assim que você resolve as coisas na vida? Fazendo uma gambiarra e voltando?!
– Tudo bem, dona Paula, farmacêutica querendo ser psicóloga de novo, eu não faço a gambiarra e não volto – ironizou Saldanha, arregalando os olhos cor de ardósia, agora faiscantes – Ficamos aqui? Ou você tem alguma ideia mais interessante de como passar por cima da pedra e seguir?
– Eu não tenho ideia nenhuma! Por que eu? Não é você que está no volante? – exclamou Paula, a pele clara agora da cor de carmim, esforçando-se para manter o controle que lhe fugia das mãos.
– Olha lá, até que enfim parece que vem alguém.
– Vem. É da Polícia Rodoviária. Vamos ver… – Paula disse, pegando a mochila num impulso que nem ela mesma teria compreendido. Era como se desejasse abandonar a cena.
– Bom dia. Ficamos sabendo agora que tinha uma pedra obstruindo a estrada – disse o policial num tom que destoava do clima entre o casal.
– E o que a gente vai fazer, seu guarda? – perguntou Saldanha com a mão na cintura.
– Só tem um jeito: vocês dão a volta aqui mesmo e retornam.
– Obrigado, seu guarda. Vamos fazer isso – concordou Paula, sorrindo.
– Boa viagem – disse o policial. – Dirija com cuidado, essa estrada é perigosa.
– “Fazer uma gambiarra e voltar…”, foi isso que o guarda falou? – questionou Saldanha.
– Certo, é por aí, meu amor – disse Paula, esticando o pescoço elegante e enfeitado por um colar comprado numa loja especializada em produtos sustentáveis.
– Certo, meu amorzinho. Fazer uma gambiarra e voltar. Agora pode, né?
– Pode, Saldanha. Agora pode. Bora voltar… – disse Paula, cheia de atitude e atirando a mochila no banco de trás.
Fizeram a gambiarra e voltaram. Silêncio. Quilômetros de silêncio, parcialmente resolvido pela música do rádio que sintonizava mal a emissora preferida do casal. Saldanha tentou sinalizar para outros motoristas, certamente sem ter conseguido orientá-los.
– Estou a fim de tomar um café. Vou parar no próximo posto, tudo bem? – perguntou Saldanha.
– Tudo bem, vamos parar, preciso retocar a maquiagem.
– Só uma perguntinha: na vida não pode fazer gambiarra e voltar. Parar para um cafezinho, pode? – provocou ele.
– Sim. Parar para uma pausa, pode.
– Mas não te parece um jeito fácil, cômodo de resolver as coisas? – insistiu Saldanha.
– Não. Não há nada de errado em relaxar um pouco – declarou Paula.
Logo retomaram o caminho de volta. Silêncio. Quilômetros de silêncio, parcialmente resolvido pela música do rádio que sintonizava mal a emissora preferida do casal.
– O que você achou daquele vaso português? Aquele azul? Lindo, não? – perguntou Paula.
– Gostei. É muito bonito.
– Ia ficar muito bonito na mesa da sala. A mamãe sempre fala desses vasos…
– Eu sei, eu sei. Mas o preço é bem alto – disse Saldanha. – Ia furar…
– Já sei: ia furar o nosso teto de gastos. Você podia sofrer impeachment, é isso? – disse Paula, enquanto sorria sem sorrir.
– Certo, é isso. Você aprendeu direitinho.
– Mas a gente não está em Brasília, Saldanha, a gente não é do governo – disse Paula.
– Não, a gente não é do governo. Mas dinheiro gasto em excesso é dinheiro gasto em excesso em qualquer lugar. É matemática, minha filha.
– E se a gente comprasse no cartão, em três vezes? – sugeriu Paula.
– Pode ser. A gente usa agora o dinheiro que só vai entrar no mês que vem– disse Saldanha.
Silêncio. Quilômetros de silêncio, parcialmente resolvido pela música do rádio que agora sintonizava bem a emissora preferida do casal. Um repórter entrou com a informação de que a pedra havia sido removida uma hora depois da queda. E aproveitou para informar que o sol brilhava, a temperatura podendo chegar aos trinta graus. E o trânsito na região fluía com a máxima normalidade.
– Talvez no próximo final de semana a gente tente viajar de novo – disse Saldanha.
– Talvez. Sempre talvez. Sempre a incerteza. Talvez a gente tente – disse Paula. Silêncio. Quilômetros de silêncio, o rádio desligado. Na porta da sala do apartamento, o cachorro, que não sabia de pedra ou de silêncio, os recebeu com uma grande festa.
Rubens Marchioni é palestrante, produtor de conteúdo e escritor. Autor de livros como A conquista e Escrita criativa. Da ideia ao texto. [email protected]. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao