Às 11 horas da manhã do dia 11 de novembro de 1918, os canhões silenciaram. No entanto, no minuto crucial antes de o armistício entrar em vigor, a história reservou uma pontual tragédia: a morte de Henry Gunther, um soldado do Exército dos Estados Unidos lembrado como o último combatente a tombar no conflito que ceifou milhões de vidas, a Primeira Guerra Mundial. Nascido e criado em Baltimore, o jovem descendente de imigrantes alemães havia sido convocado pelo Exército em setembro de 1917 e incorporado à 79ª Divisão de Infantaria como sargento de intendência. Em julho de 1918, partiu para a França, integrando a Força Expedicionária Americana (American Expeditionary Force), que se preparava para enfrentar as últimas resistências alemãs e fazer a diferença com seu expressivo volume de tropas, que, no auge da participação, totalizaria 4 milhões de homens. As condições na frente de batalha, contudo, revelaram-se brutais e desmoralizantes, e Gunther não hesitou em expressar sua insatisfação. Em carta escrita para sua família, descreveu as “condições miseráveis” existentes nas trincheiras e aconselhou um amigo próximo a evitar, a qualquer custo, a convocação para a guerra. Sua correspondência foi interceptada pelos censores militares, e Gunther acabou duramente penalizado pela administração militar, punido disciplinarmente e rebaixado da graduação de sargento à condição de soldado.
O evento assinalou um ponto de virada em sua trajetória pessoal. Determinado a recuperar sua honra e provar o seu valor, Gunther passou a buscar oportunidades de se redimir e demonstrar, sempre que possível, sua coragem, mesmo arriscando a própria vida.

Na dinâmica do conflito, o armistício com a Alemanha foi assinado às 5 horas da madrugada do dia 11 de novembro de 1918, mas estipulava que as hostilidades cessariam somente às 11 horas da manhã, a célebre “11ª hora, do 11º dia, do 11º mês”. Entre 5 e 11 horas da manhã, em meio a esse limite fluido e incerto, combates esporádicos continuaram a ser travados em meio às trincheiras. Nesse último dia, perto do vilarejo francês de Chaumont-devant-Damvillers, a unidade de Gunther deparou-se com uma posição alemã fortificada, protegida por duas metralhadoras bem assestadas e com o tiro amarrado contra as possíveis vias de acesso do inimigo.
Mesmo diante do iminente cessar-fogo, Gunther decidiu agir, provavelmente impelido por seu desejo de reabilitação. Empunhando seu fuzil M-1903 Springfield com baioneta calada, investiu sozinho contra a posição inimiga. Os soldados alemães, cientes das negociações que levaram ao armistício, tentaram dissuadi-lo, gesticulando e sinalizando para que ele abandonasse o ataque e preservasse sua vida. Gunther, no entanto, não desistiu, e disparou alguns tiros enquanto corria resoluto em direção ao inimigo. Quando chegou perigosamente perto da posição alemã, recebeu uma curta e rápida rajada de fogo de metralhadora, a qual encerrou sua vida, exatamente às 10h59, apenas um minuto antes de o armistício entrar em vigor.
Sua morte não passou despercebida. Posteriormente, o Exército dos EUA o reabilitou à graduação de sargento e concedeu-lhe a Cruz de Serviço Distinto, reconhecendo sua bravura em combate. Gunther tornou-se uma figura emblemática, representando a complexidade humana em tempos de guerra: o desejo de redenção, a bravura impulsiva e a tragédia de uma vida interrompida no tênue limite entre a paz e a guerra.
A Primeira Guerra Mundial é correntemente nomeada na historiografia, sobretudo na Europa, como Grande Guerra, pois, ao seu término, foi vista como um evento sem precedentes, tanto pela escala da destruição quanto pelo impacto global por ela provocado. À época, acreditava-se que seria “a guerra para acabar com todas as guerras”, conforme expressão cunhada em 1914 pelo escritor britânico H. G. Wells. Contudo, o advento da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), muito mais abrangente e destrutiva, levou à reavaliação do termo. Enquanto a Grande Guerra foi um conflito marcado por impasses estratégicos e uma brutalidade concentrada no campo de batalha, a Segunda Guerra Mundial desenvolveu-se em uma escala de destruição superior, envolvendo populações civis, genocídios, bombardeios de cidades e novas tecnologias de destruição em massa, culminando com os ataques nucleares contra Hiroshima e Nagasaki, no Japão. A dicotomia entre os dois conflitos reside na historicidade, na amplitude e na abrangência: a Primeira Guerra foi “grande” em seu tempo, mas a Segunda redefiniu o que a humanidade entenderia como a verdadeira escala de conflito mundial.
Assim, neste livro, coerente com a historiografia sobre o conflito, utilizamos a terminologia Grande Guerra, historicizando o enfrentamento bélico e enfatizando seu impacto singular e as profundas transformações estruturais que trouxeram inovações significativas para a evolução da forma de fazer a guerra.
A morte de Henry Gunther, muito mais do que uma tragédia pessoal, simbolizou o último ato de um drama devastador que começou em 28 de junho de 1914, com o assassinato do arquiduque Franz Ferdinand, herdeiro do trono do Império Austro-Húngaro, e de sua esposa, a duquesa Sophie, em Sarajevo. O atentado político acendeu o pavio de uma conflagração global, impulsionada por rivalidades imperialistas, alianças militares rígidas e tensões nacionalistas, além de outros fatores que afetaram a estabilidade geopolítica vigente. Nos 4 anos seguintes, o mundo testemunhou uma carnificina sem precedentes na história, que matou mais de 10 milhões de soldados e outros milhões de civis.
O conflito transformou o mapa político, econômico e social do planeta. Sua fase inicial foi marcada por movimentos rápidos e invasões maciças, como o avanço alemão pelo oeste e o fracasso do plano de guerra alemão, que buscava uma vitória rápida contra a França. No leste, os exércitos austro-húngaros e russos colidiram em campanhas igualmente devastadoras. No entanto, a guerra logo se estabilizou em um impasse caracterizado pelas trincheiras, especialmente na Frente Ocidental, onde batalhas como Somme e Verdun se tornariam símbolos de atrito, destruição e desperdício de vidas.
Entre 1916 e 1917, o conflito assumiu características de uma guerra total, envolvendo não apenas os exércitos, mas também as economias e as populações civis dos países beligerantes. Tecnologias como metralhadoras, artilharia pesada, aviões, gases químicos e submarinos intensificaram o morticínio, enquanto novos teatros de guerra surgiram no Oriente Médio, na África e na Ásia, em terra, nos mares e nos céus. Em 1917, a entrada dos EUA deu impulso decisivo à guerra, ao mesmo tempo que uma revolução afastou o Império Russo das frentes de batalha.
No ano final, 1918, o conflito atingiu seu clímax com a ofensiva da Primavera alemã, que quase rompeu as linhas aliadas no oeste. Contudo, contraofensivas bem aplicadas e coordenadas, reforçadas pelas recém-chegadas e numerosas tropas dos EUA, reverteram os ganhos alemães, levando ao colapso de suas forças e obrigando-os a buscar um armistício. Quando este foi finalmente assinado, na manhã de 11 de novembro de 1918, o mundo já estava profundamente marcado pelo sofrimento e pelas transformações geradas pelo conflito.

A Grande Guerra desmantelou impérios, redesenhou fronteiras e criou novos Estados, mas também semeou antagonismos e conflitos que persistem até hoje. Os tratados de paz subsequentes alimentaram ressentimentos que levariam a um novo e mais destrutivo conflito – a Segunda Guerra Mundial, deflagrada duas décadas mais tarde –, enquanto disputas territoriais continuaram a gerar instabilidade geopolítica global.
Henry Gunther, morto no minuto final antes do silêncio das armas, tornou-se símbolo e personagem de um conflito que insistiu em consumir vidas até o último instante. Sua morte representa a futilidade da violência que moldou a Grande Guerra e reforça a necessidade de refletir sobre o legado de um dos capítulos mais sombrios da história humana.
Carlos Daróz é historiador, professor e pesquisador. Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense e pela Université Libre de Bruxelles, com pesquisa fomentada pelo Programme Erasmus+ da União Europeia. Atuou em instituições ligadas à História Militar no exterior (Lisboa, Cabo Verde e EUA). É pesquisador-chefe do Centro de Estudos e Pesquisa de História Militar do Exército. Pela Contexto, publicou O Brasil na Primeira Guerra Mundial e Primeira Guerra Mundial.