Os estudos de história ibérica possuem grande importância no debate historiográfico, tanto para a história do Brasil como para a da América Latina: trata-se de observar a experiência peninsular e reconhecer seus rastros na construção de nações no Ultramar a despeito de suas trajetórias específicas a partir da primeira metade do século XIX. Para os historiadores interessados na formação histórica e no enraizamento do capitalismo, o tema dos impérios ibéricos, incluindo sua ascensão e periferização, é fundamental, pois permite compreender o espalhamento desse sistema e as muitas feições que ganhou do ponto de vista social e político antes e depois dos processos de industrialização e do desenvolvimento do imperialismo do século XIX. Para os historiadores da cultura e da política, o conhecimento dos lugares da Igreja Católica na vida social dos povos peninsulares, assim como o entendimento do absolutismo, dos iluminismos, dos autoritarismos, dos terrorismos e dos separatismos, conforme se desenvolveram na península ibérica, continuam a instigar novas teses e interpretações.
A experiência ibérica tem se mostrado interessante também para a historiografia voltada a desconstruir as hierarquias epistêmicas edificadas a partir da experiência ocidental da primeira modernidade e a destacar pautas identitárias que a ela se contrapunham, indicando a necessidade de buscar modos de ver, pensar e viver em sistemas políticos e sociais com os quais os ocidentais se enfrentaram em seu processo de expansão. Neste sentido, o iraniano-americano Hamid Dabashi, em seu livro Can no European Think? (2015), indaga sobre modos de pensar não informados pelo “filosofar” tradicional do pensamento ocidental. Para tanto, e não por acaso, retoma pensadores que teriam sugerido epistemologias infiéis aos padrões ocidentais, o que não espanta, dado o fato de que mesmo europeus, em muitas oportunidades, apontaram os povos peninsulares como os mais “selvagens” e menos “ocidentais” entre os europeus, como se verá ao longo deste livro. Um dos pensadores que Dabashi destaca é o espanhol José Ortega y Gasset.
Letrados e intelectuais ibéricos estiveram sempre às voltas com as possibilidades de modernização e ocidentalização da península ibérica. Desde o século XVI, no caso de Portugal, e o XVII, no caso da Espanha, pensadores das duas nações parecem atormentados com o espectro da decadência e com o fato de que seus impérios auferem menos riquezas e resultados efetivos para a construção de um Estado-nação economicamente forte do que nações como a Inglaterra, a França e a Alemanha. Ser ou não parte do Ocidente, observando-se seus padrões de produção e de liberdades a partir do século XIX, também foi uma obsessão para as elites letradas e políticas peninsulares, seja para contestar tais padrões, afirmando as singularidades ibéricas, seja para elaborar projetos de modernização. O fim da Guerra Fria e a emergência dos debates decolonialistas alterariam os termos da equação em que tal debate vinha sendo travado: pertencer ou não ao Ocidente se tornaria menos importante do que observar epistemologias dissonantes, capazes de revelar experiências não ocidentais e quebrar com hierarquias epistêmicas que impunham como universais saberes histórica, temporal e espacialmente construídos. Nesta senda, é indispensável revisitar a história ibérica, sempre às voltas com suas especificidades já destacadas em romances/contos de Ítalo Calvino (O barão nas árvores, 1990), José Saramago (A jangada de pedra, 1986), Voltaire (História de Jenni ou o ateu sábio, s. d.), entre muitos outros. É isso que fazemos aqui, nesse livro, que apresenta ao leitor a experiência ibérica em meio ao processo de ocidentalização que o mundo conheceu a partir do século XV.
Ana Nemi é graduada em História pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em História Social pela USP e doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Cumpriu estágios de pós-doutorado junto à USP, Universidade de Lisboa e Unicamp. Atualmente, é professora associada de História Contemporânea na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenadora do Núcleo de Estudos Ibéricos da mesma instituição.