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A Idade Média imaginada: usos do passado medieval no tempo presente

A Idade Média foi palco da criação das universidades, de formas diversas de pensar Deus e a divindade; da literatura profana, de formas de sociabilidade e de relações amorosas que se alongam no tempo e nos permitem partilhar suas reminiscências; de muita produção filosófica e de mulheres escritoras. Porém, apesar disso tudo, o passado medieval ainda é descrito e representado de forma bastante estereotipada e até mesmo preconceituosa.

Por Nilton Mullet Pereira e Marcello Paniz Giacomoni

O passado medieval tem servido, de modo sistemático e preocupante, como referência para diversos projetos políticos e sociais no presente. Observamos referências problemáticas ao medievo em discursos de autoridades públicas ou em grupos de redes sociais, que fazem referências ao período para justificar posições conservadoras, preconceituosas e discriminatórias, atingindo minorias, religiosidades e outras formas de existência e de vida que não fazem parte da sua visão do que seria a Civilização Ocidental.

O objetivo deste artigo é discutir os usos políticos do passado medieval no tempo presente, procurando mostrar que os usos (e abusos) deste passado segundo uma agenda politicamente interessada não nos faz compreender melhor o passado, mas, pelo contrário, torna esse passado caricato, preconceituoso, desvinculado do seu próprio tempo e personagens.

Românticos, humanistas e iluministas

Os usos do passado medieval não são exclusividade deste tempo presente. Durante o Romantismo, no século XIX, muitos autores imaginavam uma Idade Média glamorosa, enaltecendo a existência de reinos, destacando a vida de cavaleiros, magos, reis e damas da corte. Para os românticos, a Idade Média era uma grande referência, não raro sendo vista como o passado mítico que ajudava a explicar as origens dos Estados Nacionais. Ao mesmo tempo, a literatura romântica combatia o racionalismo frio e calculado e se posicionava pela exacerbação dos sentimentos, da religiosidade, das paixões e dos sonhos, numa conexão direta com o medievo.

Outras narrativas, porém, foram bem menos generosas com o período, construindo representações completamente opostas. É o caso dos artistas humanistas, que construíram nos idos dos séculos XV e XVI uma leitura da arte medieval desde os valores e padrões do novo classicismo1 do então chamado Renascimento. Rafael Sanzio (1483-1520), por exemplo, classificou a Idade Média de gótica, e ainda como sinônimo de “bárbara”, enquanto que Rabelais (1494-1553) a denominou como a “espessa noite gótica”2.

Os iluministas, por sua vez, deram um tom mais acabado ao imaginário da Idade Média das trevas, quando, no século XVIII, os movimentos revolucionários burgueses associavam o medievo apenas ao predomínio da Nobreza Feudal e da Igreja Católica, objetos da crítica dos filósofos e pensadores da época, que condenavam a religiosidade, o misticismo, a irracionalidade e a ignorância que viam naquele período, tornando a Idade Média conhecida como a Idade das Trevas3. Nesse momento, o medievo passou a ser identificado como uma era estagnada e atrasada, ou ainda, um momento da história que desvia do pretenso universalismo da razão do esclarecimento e do modo de vida fundado na ideia de progresso e evolução.

Tal imagem sobrevive: chamar alguém de “medieval” não é um elogio no senso comum. Ao contrário, permite repetir um modo pouco sofisticado de se pensar o passado e nossas relações com ele, pois cria um vínculo valorativo com o outro, produzindo a negatividade em relação a uma época ou mesmo um povo, baseado numa na temporalidade eurocêntrica e moral. É o caso, por exemplo, da música do Cazuza que diz: “Será que eu sou medieval? Baby, eu me acho um cara tão atual”.

Historiografia: novas interpretações da Idade Média

A historiografia sobre a Idade Média, nascida no século XIX, tem se renovado constantemente e produzido novas interpretações sobre o período, realizando, inclusive, a leitura séria e rigorosa dos imaginários construídos sobre o medievo ao longo do tempo. Desde a criação da ABREM, Associação Brasileira de Estudos Medievais, em 1996, até hoje, são mais de quatro décadas de pesquisa em História Medieval apenas no Brasil4, demonstrando a vivacidade e a intensidade do pensamento no campo dos estudos medievais, visto através de defesas de teses e dissertações e diversas publicações de revistas e livros.

A ideia dos usos da Idade Média tem sido bastante tematizada pela pesquisa acadêmica. Algumas publicações e eventos pensaram, ao longo das primeiras décadas do século XXI, como o cinema criou imagens, representações e tornou pública uma certa Idade Média5. O campo do Ensino tem sido, principalmente desde o final da década passada, constantemente pensado como um espaço de aprendizagem, de problematização e também de divulgação do medievo.

O espaço da escola, antes lugar de reprodução do imaginário sobre o medievo criado pelos iluministas, hoje tem se reportado à medievalística e não apenas produzido a crítica à ideia de Idade das Trevas, como também tem inserido uma série de outros sujeitos, temporalidades e temáticas nas aulas de História6. Em análise feita nos livros didáticos constantes no PNLD de 2008, apesar da manutenção do que chamamos de “dispositivo de medievalidade”7, já era possível ver abertura às “outras” Idades Médias. Tais mudanças podem ser vistas em muitos livros didáticos atuais, que têm capítulos referentes às mulheres, mentalidades, crianças, integrações e contatos, bem como problematizações do próprio conceito de Idade Média.

Discursos políticos e redes sociais: de nova a Idade Média problemática

A despeito dos avanços da historiografia e no ensino da história medieval nas escolas, um uso pouco elaborado e demasiado perigoso do medievo invade o nosso tempo, desde a política até as redes sociais. O elemento central de boa parte dessas narrativas é uma Idade Média Ocidental que seria sinônimo de um Ocidente cristão que combateu e impediu o avanço muçulmano para o interior da Europa. Desse modo, volta-se para o medievo a fim de se resgatar uma origem da civilização branca, cristã, masculina e ocidental, em oposição a tudo o que consideram ofensivo a esse estilo de vida: o islã, as mulheres, os gays, lésbicas, transsexuais, negros, indígenas, etc. De todas as Idades Médias possíveis, retorna exatamente aquela ressaltada e construída pelo renascimento e pelo iluminismo: violenta, obscurantista, intolerante.

O medievalista Paulo Henrique de Carvalho Pachá8, por exemplo, publicou em março de 2019, um artigo de divulgação em que mostra como a expressão Deus Vult (Deus Deseja) tem sido apropriada pela extrema direita no mundo, desde a eleição de Donald Trump, nos EUA. Essa expressão consiste em um “grito de guerra” utilizado pelo povo, quando o Papa Urbano II exortou os fiéis à Cruzada contra os muçulmanos, no século XI. A apropriação de Deus Vult revela-se como uma tentativa da direita mundial de se identificar com uma origem de um mundo ainda intocado pelos desvios dos infiéis de todas as cepas. Ele remete à crença na Idade Média da Reconquista cristã, que teria enfrentado o islã com a Cavalaria templária, reordenando o mundo europeu em favor dos brancos e dos cristãos.

Em diversos grupos em redes sociais, percebe-se como os discursos têm operado, mesmo que muitas vezes através de um pretenso humor. Abundam comunidades e páginas (muitas ligadas a igrejas e grupos políticos) que fazem uso de memes que remetem ao medievo. Uma dessas comunidades está no Facebook: “Memes Nobres para Plebeus Ociosos”. Com mais de 220 mil membros, a comunidade produz memes e vídeos utilizando recortes de iluminuras medievais, sempre com um português muito formal e remetendo a um passado medieval abstrato: abundam o uso de ênclises e mesóclises, palavras em desuso, bem como a substituição da letra “u” pela letra “v”, tal como na escrita da Roma Clássica. As temáticas são variadas: desalentos de amor, castidade, trovadores, fogueiras para hereges ou bruxas, política brasileira, etc… Uma proposta de humor em muitos momentos bem-sucedida, ou seja, que consegue fazer rir.

Mas um olhar mais cuidadoso faz aparecer os discursos subjacentes, escondidos por detrás das pretensas ironias. Juntamente com a página, existe um grupo fechado chamado “Feudo Ocioso”, com mais de 36 mil membros, destinado a discussões gerais e ao envio de memes criados pelos seguidores, que podem ser postados na página oficial. Dentre muitas referências à ratos e à peste, ou a feiras e fantasias medievais, e apesar de uma das regras da comunidade proibir ataques às religiões, em nome da piada, quase tudo pode ser dito: matem os “sarracenos”, matem os “canhotos”, queimem as “bruxas”. São inúmeras postagens com memes que aludem à violência contra os diferentes, conclamando que Jerusalém seja reconquistada, ou que os verdadeiros homens cristãos que defendem a fé contra os hereges, de preferência queimando-os na fogueira. Nos comentários dessas postagens, abunda o Deus Vult.

Por uma outra Idade Média

Os estudos medievais apresentam uma Idade Média de uma longa duração, um passado que se abre para o estudo acadêmico sério e conceitual, e que permite pensar um espaço muito mais amplo do que o europeu e muito mais plural do que a religiosidade cristã. A Idade Média foi palco de criação das universidades, espaços de resistência e de inventividade; das heresias que ultrajaram o predomínio da Igreja Católica e propuseram formas diversas de pensar um conceito de Deus e de divindade; da literatura profana que, por fora dos limites impostos pela moral cristã, criou formas de sociabilidade e de relações amorosas que se alongam no tempo e nos permitem partilhar suas reminiscências; da filosofia de Abelardo que questionou os universais e deu novos contornos aos debates metafísicos no Ocidente; das mulheres escritoras, particularmente, Julian de Norwich (1342-1416) e Margery Kempe (1373-1438), estudadas na bela dissertação de Mestrado de Carolina Niedermeier Barreiro9.

O passado não se constitui em monopólio do pensamento histórico ou da medievalística. O passado medieval é um campo aberto a todo o público de jogos, RPGs, filmes, séries e outras formas de acessar e de se relacionar com ele. Mas é um problema quando dessa gama incrível de imaginários, seleciona-se modos muito particulares, quase sempre sem qualquer referência ou conexão com a pesquisa acadêmica, de ver e entender o passado medieval, fazendo usos e abusos, como é o caso em questão, produzindo referências que servem como justificativas para a afirmação de discursos de ódio, de discriminação e de exclusão.

As Cruzadas tornam-se, neste momento, um passado recuperado, agora não pela espada, mas pelo cano de uma arma de fogo, que quer fazer sucumbir a diferença. Em razão de que a diferença é vista como o que desagrega uma imaginada sociedade cristã ocidental, que teria resistido às invasões árabes e, no passado, teria permitido a construção de uma civilização branca, cristã, oposição a tudo que se desvia da moral cristã e dos modos de vida eurocêntricos. A Idade Média seria a origem mítica desse lugar que só existe na cabeça dos preconceituosos, racistas, islamofóbicos e homofóbicos.

Esse evidente abuso que se está fazendo do passado medieval destoa do conceito de Deus criado, por exemplo, desde a “heresia” de Francisco de Assis, que nos apresentou um Deus Natureza, acontecimento efetuado em cada detalhe ou movimento da natureza, das plantas, dos animais, construído desde uma leitura ortodoxa do evangelho, que colidia diretamente aos modos de vida e de administração do Clero da época. Para Francisco, a liberdade de espírito, a defesa da natureza e a vida comunitária eram elementos centrais para se pensar uma religiosidade, desde um Deus que se poderia observar na encarnação de todas as coisas, sem distinções ou hierarquias.

A historiadora Chiara Frugoni10, estudiosa da vida de Francisco, mostra que, a propósito, se a Igreja levantava bandeira e espada para conquistar a Terra Santa e guerrear contra os muçulmanos, o propósito de Francisco era bem outro, como se pode ver na Regra 1221, Regula non bullata, o Santo aposta em um convívio entre os muçulmanos, “”sem brigas, nem disputas”. E ainda acrescenta que somente ““quando em situação de respeito mútuo poderiam tentar falar de Deus. Caso contrário, contentar-se-iam em dar bom exemplo”11.

Qual Idade Média é mais produtiva como experiência de aprendizagem para uma sociedade possível no presente, justa, solidária, igualitária e democrática? Se os resíduos medievais que temos hoje da vida, da obra, do pensamento de Francisco de Assis, que constituem um passado vivo, que insiste no tempo e que tem um uso com potencial ético para um futuro de tolerância, liberdade e democracia, ou a apropriação das Cruzadas e à referência ao Deus Vult como uso acrítico e político que enverga o passado para um lugar de opressão e de intolerância?

Notas

1 Do ponto de vista da história do Ocidente tivemos períodos muito ligados aos padrões de estilo artístico, chamados de Clássicos. O primeiro faz referência ao Classicismo greco-romano, que construiu um estilo baseado no equilíbrio e na representação simétrica e proporcional. Esse estilo greco-romano foi, no Renascimento (século XV-XVI), inspiração para a criação de um novo classicismo, desta vez como um modo de oferecer tributo ao pensamento e as artes greco-romanas, em detrimento da arte e do pensamento medieval, vistos como grosseiros e atrasados.

2 HILÁRIO, Franco Júnior. A idade Média: nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2001.

3 MACEDO, José Rivair (Org.). A Idade média portuguesa e o Brasil: reminiscências, transformações, ressignificações. Porto Alegre: Vidráguas, 2011. 216 p.

4 DA MOTTA BASTOS, Mário Jorge. Quatro décadas de História Medieval no Brasil: contribuições à sua crítica. Diálogos, Revista do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História, UEM, v.20, n.3, p. 02-15, 2016.

5 Ver a publicação: MACEDO, José Rivair; MONGELLI, Lênia Márcia (Orgs.). A Idade Média no Cinema. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.

6 A primeira publicação sobre o tema abordou as representações da Idade Média nos livros didáticos de História, num período que vai do início do século XX até início do XXI: PEREIRA, Nilton Mullet; GIACOMONI, Marcello Paniz. Possíveis Passados: representações da Idade Média no Ensino de História. Porto Alegre: Editora Zouk, 2008.

7 O conceito “dispositivo de medievalidade” foi criado no âmbito da pesquisa realizada pelos dois autores deste texto, para explicar a disposição dos saberes e dos poderes que produziram modos muito particulares de se relacionar com a Idade Média, no interior da sala de aula de História. Dessa maneira, esse dispositivo constitui-se como um conjunto de práticas discursivas e não discursivas, que transitam por livros didáticos, planejamentos e currículos escolares, criando um imaginário sobre o medievo baseado no que foi produzido pelos iliministas. O elemento central consiste na criação de um outro, negativo, que serviu de base e justificativa para o universalismo pretendido pela razão do esclarecimento.

8 Artigo disponível no site Pacific Standard pelo link:<https://psmag.com/ideas/why-the-brazilian-far-right-is-obsessed-with-the-crusades> Acesso em 22 de agosto, 2019.

9 BARREIRO, Carolina Niedermeier. Just because I am a woman… possibilidades de autoria para mulheres escritoras (Século XIV). Dissertação (Mestrado em História). PPG História (UFRGS). 174p. Disponível em: <https://lume.ufrgs.br/handle/10183/197084> Acesso em 22 de agosto, 2019.

10 FRUGONI, Chiara. A vida de um homem: Francisco de Assis. Tradução de Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

11 Uma outra face de Francisco de Assis. Entrevista especial com Chiara Frugoni. 02 Agosto 2015. IHU On line. http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/544964-a-outra-face-de-sao-francisco-de-assis-entrevista-especial-com-chiara-frugoni  Acesso em 22 de agosto, 2019.

Nilton Mullet Pereira é licenciado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992), Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1998) e Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2004). Pós-doutorado em História Medieval, na UFRGS. Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), da área de Ensino de História. Professor do Mestrado Profissional em ensino de História – UFRGS. Pesquisa as relações entre a imaginação e aprendizagem histórica.

Marcello Paniz Giacomoni é licenciado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2008), Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2011) e Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2018). Atualmente é Professor do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisa as relações entre retórica e ensino de História e o uso de jogos no ensino de História.

Fonte: Blog Café História