“SENHOR, PERDOE-ME por ser tão humilde. Mas tenha a certeza de que, na minha humildade, eu não vou tomar o seu lugar.” Nos meus tempos de seminário, ouvi esta “oração”, e ela saiu da boca de um padre, certamente como recurso para ensinar o que não se deve fazer. Ele conhece bem a diferença entre Deus, o Absoluto, e ele, o relativo.
Não é de hoje que o ser humano procura encontrar o seu lugar nessa questão. Mas sempre se dá conta de que, ao pensar que chegou ao destino, é exatamente nesse momento que está distante dele como nunca esteve. “Eu sou humilde” equivale a “Eu sou arrogante”.
O tema da humildade está presente em todos os tempos, em todos os cantos. A gente não precisa retroceder tanto na História. Jesus Cristo foi o maior pregador sobre ela. Dentre outras coisas, deixou claro que bem-aventurados eram os humildes, porque eles, sim, receberiam a terra por herança. O que não é pouco.
Claro que isso dá um nó infernal em nossa cabeça. Porque tudo parece muito contraditório. Como alguém que se humilha pode ser exaltado, enquanto o outro que, exaltando-se, vai atrair a humilhação? Não seria o contrário? Para nós, a conta não fecha. Nosso paradigma é outro. No entanto, não foi assim para Mahatma Ghandi, Madre Paulina, Rei Davi, Madre Tereza de Calcutá, dentre outros.
Mas sem humildade, como estar no mundo? Eis o impasse, cuja solução pode ser encontrada na advertência feita pelo filósofo Mário Sérgio Cortella, quando afirma que “Gente grande de verdade sabe que é pequena e por isso cresce. Gente muito pequena acha que já é grande e a única maneira dela crescer é se ela abaixar outra pessoa.”
A humildade é a virtude que consiste em ter consciência das próprias limitações e fraquezas e agir de acordo com esse entendimento. Analisando do ponto de vista da filosofia, Immanuel Kant afirma que se trata da virtude central da vida, uma vez que ela dá uma perspectiva apropriada da moral.
No livro Perto do coração selvagem, a escritora Clarice Lispector afirma: “… aceito tudo o que vem de mim porque não tenho conhecimento das causas e é possível que esteja pisando no vital sem saber; é essa a minha maior humildade, adivinhava ela”. Em poucas palavras, Clarice dá uma mostra do conflito de conviver com essa consciência, mas não há como se desviar de tudo isso.
Na prática, o tema é complexo. Senão imaginemos uma cena. Ignácio vive sozinho, dispõe de apenas uma vaga na garagem de seu apartamento, já tem dois carros importados – um dorme com os perigos da rua ou paga estacionamento – e deseja adquirir um terceiro veículo: ele precisa rever alguns valores. Outro, o Walter, percorre o caminho inverso. Vive acometido por crises de culpa somente porque luta para substituir o único carro popular, usado para atender às necessidades básicas de locomoção, por um que seja alguns anos mais novo e gaste menos na oficina e no posto de combustível.
Ou o estudante universitário que, durante um semestre, lê um livrinho de 150 páginas e três artigos de dez páginas cada um e se dá ao luxo de pensar que já leu muito e está se transformando num intelectual ‘hors concours’, acima da média. Ora, isso não tem o menor cabimento. Nesses dois últimos casos se aplica muito bem a recomendação feita pela primeira ministra de Israel, Golda Meir, a Moshé Dayan, militar e político israelense, ao sugerir “Não seja tão humilde, você não é assim tão importante.”
A pregação e adoção de comportamentos em favor da humildade é uma atitude indispensável. Mas convém manter presente a pergunta essencial: de que humildade estamos falando e a quem ela interessa?
RUBENS MARCHIONI é palestrante, publicitário, jornalista e escritor. Eleito Professor do Ano no curso de pós-graduação em Propaganda da Faap. Autor de Criatividade e redação, A conquista e Escrita criativa. Da ideia ao texto. [email protected] — http://rubensmarchioni.wordpress.com