A guerra é, antes de tudo, um fenômeno social. A despeito do enorme protagonismo atribuído aos soldados nos campos de batalha, são as sociedades, e não os exércitos ou seus generais, que produzem as guerras. Essa assertiva, aparentemente trivial, nos permite concluir que transformações na conduta da guerra decorrem, primeiramente, de transformações sociais.
No momento em que a humanidade deixa a era industrial para ingressar na era da informação, passando por rápidas e profundas alterações, devemos procurar entender, de forma objetiva, como essas mudanças afetam a natureza dos conflitos armados e contribuem para a redefinição do atual ambiente estratégico. Ou seja, o curso da história da humanidade, necessariamente, insere as confrontações armadas em um contexto social, político, geopolítico, econômico, ambiental e científico-tecnológico mais amplo. É a conjunção desses fatores que define a natureza da guerra, e não o contrário.
Constatamos rotineiramente que a compreensão acerca da violência armada, nestas primeiras décadas do século XXI, goza de muito pouco consenso. Na verdade, a estrutura conceitual que, ao longo do tempo, tem orientado o Estado na promoção de segurança e defesa já não atende mais às legítimas demandas da sociedade. Dentro desse contexto, podemos observar que os conflitos em curso ao redor do mundo divergem significativamente do modelo de confrontação armada consagrado no século XX.
Atualmente, as guerras apresentam uma enorme multiplicidade de atores e motivações que dão forma a ambientes extremamente complexos, não se limitando apenas à rivalidade entre Estados nacionais antagônicos, que recorrem a suas forças armadas por razões estritamente políticas, como aconteceu, por exemplo, durante as duas Guerras Mundiais.
Criado, segundo a concepção vestfaliana do século XVII, para assegurar a liberdade e a independência de povos e nações autônomos, o Estado-nação enfrenta novos desafios em um mundo globalizado, caracterizado por intensas relações de interdependência e interconectividade, que ignoram deliberadamente as fronteiras políticas. O Estado deixou de ser o único ator de relevo na ordem internacional. Ademais, se defronta com limites cada vez mais severos para o exercício pleno e absoluto do seu próprio poder no plano doméstico. Como entes políticos, eles ainda competem acirradamente entre si. Todavia, têm diversificado as formas de enfrentamento e procurado reduzir a visibilidade das ações estratégicas, em face de uma opinião pública, cada vez mais, intolerante e impaciente, e menos disposta a arcar com os custos de uma guerra total.
Ao uso de outros meios que não somente as alternativas militares tradicionais, soma-se o predomínio de uma forma de violência que se caracteriza por ser, a um só tempo: armada, organizada, não estatal, endêmica e hiper-difusa.
A guerra civil na Síria, que por sua dramaticidade e importância tem recebido justo destaque da imprensa internacional, ilustra muito bem a dinâmica dos conflitos atuais. Atores armados não estatais, como o Hezbollah, o Estado Islâmico, dezenas de facções rebeldes e outros grupos jihadistas, compartilham o mesmo teatro de operações com forças militares iranianas, russas, israelenses, norte-americanas, além de outros países da OTAN e, é claro, do enormemente desgastado governo do ditador Bashar al-Assad, encastelado em Damasco.
É fato que a sociedade tem apresentado demandas por segurança que, apesar de não serem inéditas em sua essência, são requeridas em um novo contexto. Nem tanto pela dimensão dos danos experimentados, mas, sobretudo, pela conectividade e interdependência dos mais variados fatores. Crimes transfronteiriços, terrorismo doméstico e internacional, fluxos migratórios, pressão demográfica, urbanização incontida, fortalecimento de identidades étnicas e culturais, globalização, escassez de recursos e questões ambientais são apenas alguns dos componentes desse intricado mosaico, que conta, ainda, com a real política do Estado-nação para tornar seus contornos mais obscuros e indefinidos.
Grupos rebeldes, organizações terroristas, movimentos insurgentes e quadrilhas armadas demonstram possuir motivações diversas, não necessariamente centradas em uma agenda política. Até mesmo, organizações criminosas e gangues territoriais têm desenvolvido o potencial de desestabilizar gravemente a ordem interna, extrapolando as fronteiras nacionais por meio de suas práticas delituosas e conexões globais. Na América Latina, por exemplo, criminalidade de alta intensidade e insurgência criminal tornaram-se as principais ameaças à paz e à estabilidade regionais.
Todavia, o excessivo apego a uma visão ortodoxa dos conflitos armados tem contribuído, sobremaneira, para agravar a desordem e o sofrimento que afligem os povos que habitam este planeta. Assim sendo, compreender a natureza da guerra na era da informação tornou-se uma questão crucial. Porquanto, interpretar a violência sob uma nova ótica, decerto, oferecerá novas perspectivas para a paz.
Alessandro Visacro é coronel do Exército Brasileiro. Foi declarado aspirante a oficial da arma de infantaria pela Academia Militar das Agulhas Negras no ano de 1991. Possui o curso de Altos Estudos Militares da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. Dentre suas principais comissões, destacam-se: comandante da 3ª Companhia de Forças Especiais, comandante do 1º Batalhão de Forças Especiais, oficial de operações do 2º Batalhão de Força de Paz no Haiti e chefe do Estado-Maior do Comando de Operações Especiais. É autor de Guerra irregular: terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência ao longo da história, Lawrence da Arábia e A Guerra na era da informação, ambos publicados pela Contexto.