Depois de uma série de exercícios para manter a forma e a performance, Tiago se livrou do trapézio e voltou para casa a 250 metros dali. Ele ainda subia a escada de uma velha casa geminada, quando foi saudado.
– É…, pelo visto o treino rendeu, né, “seu Tiago” – disse Iza, também conhecida como Isolda, segundo a Certidão de Nascimento. – O que foi esse esparadrapo no cotovelo? Caiu, eu sei.
– Ferimentos à parte, rendeu. Tô morrendo de fome. Iza, por que a gente não vai almoçar naquele restaurante que tem aquela comida caseira deliciosa, lembra?
– Hum…, como eu sou uma esposa praticamente maravilhosa, vou aceitar o convite. Você paga. Será que tem fila? Tem.
– Não, minha querida, nada disso. Esposa maravilhosa paga o almoço do marido.
– Tudo bem, seu aproveitador, mas eu não disse que sou maravilhosa. Eu ainda estou no “quase”, ainda falta muito.
– “Ainda falta muito”. Quer dizer que então você ainda vai me explorar muito, é isso?
– Não é bem isso, Tiago, é quase isso. Quase – a risada escapou naturalmente.
– Bom, temos um acordo, você venceu. Você morre de medo de se engasgar, veja lá! E vamos matar a minha fome.
– Prometo não dar vexame, Tiago, prometo.
– Tudo bem, então eu deixo você ir comigo. Você fez alguma coisa no cabelo? Essa franja está muito bonitinha. Pra você que é magrinha, fininha, ficou ótimo.
Tiago não se deu conta da roupa de Iza, um vestido que era novo e parecia estar feliz com seu primeiro passeio fora da loja e do corpo de outras mulheres.
– Engraçado, eu estava observando, parece que você nasceu com o rosto apoiado na mão. Desde quando você ficou assim?
Desceram a escada, tingiram de vermelho as mãos com algumas amoras e saíram. Para trás, deixaram uma pilha de roupa sobre a cama, na fila de espera. Elas não aguentavam mais esperar (por que tanta demora?), querendo ir para a segurança do guarda-roupa. Lá dentro, cada uma no seu cabide, à prova de poeira e de outros acidentes quando se tem um cachorro cheio de energia e com falta de assunto por perto. Elas se sentiriam mais seguras.
No quarto ao lado, a beliche pedia um pouco de carinho, aquilo parecia um território abandonado. A chave do carro, que fica sobre o painel da TV, havia desaparecido misteriosamente. Bastaram 26 minutos de busca e alguns apelos a São Longuinho para que ela se apresentasse, lá de cima da geladeira, com ar de criança perdida. Os “três pulinhos”, cláusula contratual para que o santo faça a sua parte, foram negligenciados por Tiago. Que o santo não se zangue e na próxima vez não esconda o carro.
– Esse é seu único blazer, né? E está cheirando a cigarro, credo. Não tá na hora de comprar outro? Que não seja cáqui? – disse Iza.
– Eu gosto dele. Tá bom assim.
– Blazer e testeira? Pra almoçar fora, Tiago? Não tá um pouco demais isso?
– Na média estou melhor que você. E o que você me diz do seu costume de evitar usar roupas ou objetos pessoais “contaminados”, como você diz? TOC….

Dentro do restaurante os chamados e pedidos se atropelavam.
– Pra mim é um strogonoff de carne, por favor, e pra beber, uma cervejinha bem gelada.
– Eu vou querer carne de panela no capricho e suco de laranja com gelo.
– Você me vê uma galinhada com pequi, depois eu peço a bebida, ok?
– Eu quero uma moqueca capixaba. Um prato serve duas pessoas, né? Ótimo.
– Garçom, por favor!
– Um instante, já vou aí, chefe! – e por pouco o galheteiro não se jogou das suas mãos a serviço de outra mesa no extremo do restaurante lotado e ruidoso.
– Tem bobó de camarão?
– Moqueca de peixe, por favor. E uma cerveja zero, ordens médicas.
Naquele domingo o trabalho no restaurante ficou bem acima da média. Foi intenso. Era como se todos os clientes, não clientes, e mais uma parcela da humanidade tivesse combinado um almoço no mesmo dia, horário e local. O motivo, não sei.
Panelas e caçarolas trabalhavam a todo vapor. A cozinha exigiu todas as forças de Francesca. No papel de Chef, ela se desdobrou, fez malabarismo, acionou todas as energias da equipe para atender tamanha demanda. Pratos e as receitas desenvolvidos por ela caíram no gosto de toda essa gente. Era o preço a pagar pelo sucesso inesperado.
Chegaram.
– Você viu o tamanho da fila de espera? – disse Tiago.
– Vi. E não gostei nem um pouco.
– Espera, vou ver o que eu posso fazer, espera aí.
A amostra grátis de fumaça que vinha lá de dentro permitia que as narinas fizessem uma leve degustação e reagissem como se estivessem mergulhadas num poço de temperos. Tiago deu alguns passos, fez de conta que não sabia de nada e foi entrando no meio da fila, aproveitando-se do fato de que um homem havia se distanciado para ouvir melhor o que a esposa dizia.
– Escuta, meu amigo, você sabe há quanto tempo estou esperando?
– Sim, eu imagino, claro, eu imagino.
– A fila termina logo ali.
– É que a minha esposa…
– A sua esposa o quê…?
– A minha esposa tem problema de saúde, sabe…
– É uma pena, meu amigo, a fila está andando depressa. Logo chega a sua vez, entendeu?
Tiago olhou para Iza e coçou a cabeça. “Nossa, porque eu não lembrei disso, a Francesca é praticamente minha amiga!”
– Oi, Francesca, que bom que eu te encontrei. Sou seu admirador, acredita?
– Oi, obrigada, mas do que se trata? – ela estava acelerada.
– Bem, é que a fila tá imensa, e você sabe, a minha esposa…
– Não, não sei. Quem é mesmo a sua esposa? Você me conhece?
– Ela está lá no fim da fila, tá complicado, sabe? Será que você não descola…?
– Olha, hoje isso aqui tá uma loucura!
– Sei, sei, mas será que…?
– Com licença, estão me chamando na cozinha. Boa tarde, senhor.
Tiago chegou ao lugar de onde nunca devia ter saído.
– É, Iza, a coisa tá brába, a coisa tá brába. Pessoal insensível!
– Onde você foi, criatura?
– Fui falar com a Francesca.
– Quem é Francesca?
– Eu nunca te falei da Francesca? É a chef aqui do restaurante. Meio conhecida minha, vi umas fotos dela, até li alguma coisa…
– E o que você foi falar com a “Francesca”?
– Bom, fui tentar aliviar a demora, uma baita fila, cara!
– E o que você disse, Tiago?
– Eu disse que você estava se sentindo mal, acho até que ia desmaiar, essas coisas.
– “Desmaiar”? “Essas coisas”? Sei! – e prosseguiu. – Esse falatório é por causa do maldito medo que você tem de ficar mudo?
“Estou mudo, não posso responder”, pensou Tiago, mentindo para si mesmo.
– Sabe, agora que eu me lembrei. Em casa tem algumas coisas bem gostosas. Eu preparo um almoço rapidinho – disse Iza.
– Se é rapidinho não é coisa muito boa.
– Calma, você vai ver, vou caprichar.
– Mas não é muito trabalho pra você, querida?
– Não, meu amor, não é. Aí, enquanto você lava a louça eu “desmaio” no sofá.
– Como assim?!
– É, eu desmaio. É melhor desmaiar no sofá do que dar vexame, desmaiar na fila do restaurante, você não acha, querido?
– Pensei que depois do almoço a gente fosse pegar um cineminha… – disse Tiago.
– Uma pena, porque na hora do cineminha eu estarei devidamente desmaiada. Vamos pra casa.
E mais não disseram. [Eu, hein?!]
Rubens Marchioni é escritor e artista plástico. Autor dos livros Criatividade e redação, A conquista e Escrita criativa. Da ideia ao texto, pela Editora Contexto. [email protected].