O uso da palavra está, necessariamente, ligado à questão da eficácia. Visando a uma multidão indistinta, a um grupo definido ou a um auditório privilegiado, o discurso procura sempre produzir um impacto sobre seu público. Esforça-se, frequentemente, para fazê-lo aderir a uma tese: ele possui, então, uma visada argumentativa. Mas o discurso também pode, mais modestamente, procurar modificar a orientação dos modos de ver e de sentir: nesse caso, ele possui uma dimensão argumentativa. Como o uso da palavra dota-se do poder de influenciar seu auditório? Por quais meios verbais, por quais estratégias programadas ou espontâneas ele assegura a sua força?
Essas questões, das quais se percebe facilmente a importância na prática social, estão no centro de uma disciplina cujas raízes remontam à Antiguidade: a retórica. Para os antigos, a retórica era uma teoria da fala eficaz e também uma aprendizagem ao longo da qual os homens da cidade iniciavam-se na arte de persuadir. Com o passar do tempo, entretanto, ela tornou-se, progressivamente, uma arte do bem dizer, reduzindo-se a um arsenal de figuras. Voltada para os ornamentos do discurso, a retórica chegou a se esquecer de sua vocação primeira: imprimir ao verbo a capacidade de provocar a convicção. É a esse objetivo que retornam, atualmente, as reflexões que se desenvolvem na era da democracia e da comunicação. Uma profusão de trabalhos, que frequentemente são ignorados em razão das barreiras disciplinares, agrupa-se em torno de uma série de questões-chave. O que pode a troca verbal nas sociedades humanas? Em que medida ela está fundada na razão? Ela autoriza um acordo e uma solução dos conflitos ou se lança em diálogos de surdos? Ela é o instrumento da democracia ou o lugar da manipulação?
Os tratados de retórica e as teorias da argumentação: objetivos e implicações
A unidade desse questionamento não deve mascarar as divergências que aparecem, frequentemente, em um mesmo campo disciplinar. É que as concepções concorrentes da retórica e da argumentação não são redutíveis nem a um conjunto de diferenças formais, nem a uma querela escolástica. Elas colocam em jogo uma visão da comunicação humana e das funções da fala social. É assim que, introduzindo sua nova retórica, Perelman e Olbrechts-Tyteca destacaram o sentido de sua perspectiva: buscar uma solução para o problema dos desacordos que dividem nosso mundo e uma alternativa à violência bruta. É com essa finalidade que eles se voltam para a troca verbal como busca de um acordo sobre o razoável – sobre o que, na impossibilidade de oferecer uma verdade, por definição ilusória nas relações humanas, parece plausível e aceitável a uma maioria. Para os autores, a retórica, sinônimo de argumentação, confunde-se, assim, com uma lógica dos valores e com um exercício da razão prática que possui uma dimensão ética além da social. Aumenta-se, assim, a dificuldade e pode-se ver que uma parte das reflexões contemporâneas aceitou o desafio, ora elaborando uma “ética da discussão” fundada sobre a racionalidade e, então, suscetível de gerir o espaço público (Habermas), ora delimitando um domínio de resolução de conflitos a partir de uma perspectiva racional (Eemeren et al., 1996).
Para outros, a argumentação tem por vocação explorar as vias da razão e do raciocínio, tal como é empregada na vida cotidiana em língua natural. Os estudos da argumentação devem, então, permitir compreender o que é um argumento, avaliar sua validade lógica e desvelar os raciocínios falaciosos. A finalidade da empreitada é, ao mesmo tempo, filosófica e pedagógica: trata-se de formar os espíritos e desenvolver as capacidades críticas. É uma propedêutica, que deve formar cidadãos esclarecidos. Ela desenvolveu-se principalmente no espaço anglo-saxão, no qual a lógica informal se aproximou do critical thinking, ou aprendizagem da aptidão para a análise crítica.
Para outros, ainda, o objetivo maior dos estudos sobre a argumentação é analisar, sob todas as suas facetas, o funcionamento da comunicação humana como fenômeno linguageiro, cognitivo e sociopolítico. Trata-se não de julgar ou de denunciar, não de fornecer critérios e de aplicar normas de avaliação, mas de descrever a realidade das trocas verbais que constroem as relações intersubjetivas e a realidade social. Essas abordagens descritivas e analíticas ambicionam aprimorar a compreensão do mundo no qual evoluímos cotidianamente, esclarecendo os fenômenos que o compõem: as interações da vida cotidiana, o discurso político ou jurídico, a imprensa escrita, as mídias, a ficção… Trata-se, ao mesmo tempo, de tornar disponível uma regulação e de estudar casos típicos concretos. Alguns enfatizam a elaboração conceitual, outros preferem utilizar os instrumentos de análise que se afastam dessa elaboração para apreender a atualidade ou para esclarecer um corpus histórico.
Essas abordagens, que suscitam questões de cidadania e que propõem oferecer um esclarecimento particular às diversas ciências humanas, opõem-se à “argumentação na língua”, que recusa uma concepção de argumentação fundada sobre o logos, isto é, sobre a linguagem como razão. Se o objetivo primeiro dessa abordagem é disciplinar – trata-se de desenvolver uma teoria semântica –, ela implica, também, uma visão do discurso que coloca em dúvida sua capacidade de raciocinar. Por conseguinte, é a empreitada perelmaniana, como lógica dos valores e como tentativa de chegar ao razoável pelo compartilhamento da palavra, que se encontra radicalmente questionada.
É preciso acrescentar a essas correntes uma definição restrita da retórica, que se fundamentou na abordagem estrutural das figuras iniciada pelo Grupo µ de Liège, sob o título de Rhétorique générale (1982 [1970]). No rastro da linguística e, em particular, de Jakobson, essa abordagem se concentra sobre a retórica como recurso da poética, investigando os usos da língua que singularizam a literatura. As retóricas centradas na elocutio e que privilegiam as funções puramente estéticas do figural são bem numerosas atualmente. Elas estão próximas de uma disciplina que continua a se beneficiar, nos estudos de Letras, na França, de um lugar institucional privilegiado (ela faz parte do programa dos concursos): a estilística.
É preciso distinguir retórica de argumentação?
Vê-se, por essa breve síntese, que as abordagens diversificadas em que ocorrem perspectivas ora complementares, ora heterogêneas, produzem diferentes divisões da argumentação e da retórica. Essas diferenças são reconsideradas e explicadas no número 2 da revista Argumentation et Analyse du Discours (2009), dedicada ao assunto, e pode-se, facilmente, relacioná-las às interrogações de fundo que acabamos de evocar. Pode-se considerar, como o faz Michel Meyer (2009), que “retórica” constitui, em um de seus sentidos, um termo genérico: é o nome apelativo de uma disciplina particular que engloba a argumentação. Mas o termo pode também designar um ramo de estudo que se opõe à argumentação. O próprio Meyer vê, na argumentação, aquilo que permite observar uma questão a partir da oposição das respostas que lhe são produzidas, e, na retórica, a atitude que consiste em mascarar a questão como se ela já estivesse resolvida. A oposição que se segue entre o discurso cativante e o discurso racional está na linha direta das divisões frequentemente propostas entre a retórica como manipulação (tradição que remonta a Platão) e a argumentação como partilha da palavra e da razão.
Como o título e o subtítulo da obra o indicam – Traité de l’argumentation. La nouvelle rhétorique –, Perelman e Olbrechts-Tyteca não diferenciam retórica e argumentação. As duas denominações designam, nessa obra, todos os meios verbais suscetíveis de fazer os espíritos aderirem a uma tese. Os autores não retomam tampouco a distinção feita por Aristóteles entre a dialética como disputa contra um adversário escolhido – diálogo em que o confronto das teses em presença favorece a busca da verdade – e a retórica como discurso endereçado a um público amplo em busca de um consenso orientado para uma finalidade prática.
É oportuno apagar as distinções que desejam separar o trigo do joio, tendo em vista o fato de que a retórica “se dá como o lugar paradoxal da possibilidade da democracia ao mesmo tempo em que constitui uma ameaça para ela”? (Danblon, 2005: 7). A despeito dessa dificuldade, parece-nos que será preciso (à maneira de Perelman) correr o risco de englobar domínios muito frequentemente separados, se quisermos abranger, no mesmo campo de estudo, todas as modalidades segundo as quais a fala tenta agir no espaço social. De fato, é importante compreender, simultaneamente, como o discurso faz ver, crer e sentir, e como ele faz questionar, refletir, debater. Na prática linguageira, essas duas tendências estão intimamente ligadas e são, por vezes, indissociáveis. É por isso que a teoria da argumentação no discurso – explorando não somente a visada, mas também a dimensão argumentativa da fala – deseja cobrir um vasto inventário de discursos que ora conquistam a opinião, ora simplesmente orientam o olhar. Nessa perspectiva, considera-se que, na relação intersubjetiva, a fala eficaz não é somente aquela que manipula o outro, pois ela é também aquela que compartilha do raciocínio e do questionamento. Isso quer dizer que manteremos aqui o uso autorizado por Aristóteles e Perelman, para os quais os termos “retórica” e “argumentação” são permutáveis.
O estudo da argumentação como parte integrante da Análise do Discurso
Compreende-se, então, a tarefa assumida pela análise dita retórica ou argumentativa: ela estuda as modalidades múltiplas e complexas da ação e da interação linguageiras. Desse modo, ela reivindica seu lugar não somente nas ciências da comunicação, mas também no seio de uma linguística do discurso, compreendida em sentido amplo como um feixe de disciplinas que se propõem a analisar o uso que se faz da linguagem em situações concretas. Mais precisamente, a análise argumentativa apresenta-se como um ramo da Análise do Discurso (AD) na medida em que deseja esclarecer os funcionamentos discursivos, explorando uma fala situada e, pelo menos, parcialmente sujeita a coerções. Da maneira como as tendências francesas contemporâneas a definem (Maingueneau, 1991; Charaudeau e Maingueneau, 2002), trata-se de uma disciplina que:
- relaciona a fala a um lugar social e a quadros institucionais;
- ultrapassa a oposição texto/contexto: o estatuto do orador, as circunstâncias sócio-históricas em que ele toma a palavra ou a pena, a natureza do auditório visado, a distribuição prévia dos papéis que a interação aceita ou tenta frustrar, as opiniões e as crenças que circulam na época são fatores que constroem o discurso e cuja análise interna deve levar em consideração;
- se recusa a pôr na origem do discurso “um sujeito enunciador individual que seria dono de si mesmo” (Mazière, 2005: 5): o locutor, como o auditório, é sempre atravessado pela fala do outro, pelas ideias preconcebidas e pelas evidências de uma época e é, por isso, condicionado pelas possibilidades de seu tempo.
É essa reorientação da antiga e da nova retóricas que permite articular análise argumentativa e análise do discurso (Amossy, 2008). A expressão “a argumentação no discurso” pretende, precisamente, sublinhar esse pertencimento. Ao mesmo tempo, essa denominação evoca a “argumentação na língua”, da qual se distingue claramente e com a qual deseja, no entanto, manter uma ligação. Sabe-se que os estudos da argumentação penetraram as ciências da linguagem por meio dos trabalhos de Anscombre e de Ducrot, que continuam sendo autoridades no assunto. Ora, Ducrot (2004) destacou a diferença, segundo ele, entre argumentação retórica e argumentação linguística, considerando que a argumentação está na língua e não subscreve às virtudes do logos. Estudamos, ao contrário, a argumentação no discurso, do qual ela é uma dimensão constitutiva. Não há discurso sem enunciação (o discurso é o efeito da utilização da linguagem em situação), sem dialogismo (a palavra é sempre, como diz Bakhtin, uma reação à palavra do outro), sem apresentação de si (toda fala constrói uma imagem verbal do locutor), sem o que se poderia chamar “argumentatividade” ou orientação, mais ou menos marcada do enunciado, que convida o outro a compartilhar modos de pensar, de ver, de sentir. Em suma, todo discurso supõe o ato de fazer funcionar a linguagem num quadro figurativo (“eu” – “tu”); está imerso na trama dos discursos que o precedem e o cercam; produz, de bom ou de mau grado, uma imagem do locutor e influencia as representações ou as opiniões de um alocutário. Nesse sentido, o estudo da argumentação e do modo como ela se alia aos outros componentes na espessura dos textos é parte integrante da análise do discurso.
Plano da obra
A exposição de um modelo de análise passará por várias etapas. Uma apresentação panorâmica das abordagens contemporâneas em sua relação com a retórica clássica permitirá situar a análise argumentativa do discurso e mostrar seus princípios constitutivos (Introdução). Os capítulos seguintes procederão à apresentação dos diferentes aspectos do discurso que pertencem à análise argumentativa: o auditório e o ethos (ou apresentação de si do orador), que fundam o dispositivo da enunciação (Primeira parte); os fundamentos da interação argumentativa representados pelas evidências compartilhadas e pela doxa, de um lado, e, de outro, os esquemas argumentativos que se inscrevem no discurso – entre os quais o entimema e a analogia (Segunda parte); os meios verbais que a argumentação mobiliza em uma associação estreita do logos e do pathos, assim como a função argumentativa das figuras de estilo (Terceira parte); enfim, a importância dos gêneros que fornecem ao discurso argumentativo seus arcabouços teóricos (Quarta parte). Essa última parte, retomando a questão dos quadros genéricos, permitirá colocar à prova uma análise argumentativa mais completa dos exemplos retirados de diferentes tipos de discursos. Concluirá, assim, uma obra que se propõe não somente a desvelar os funcionamentos linguageiros, mas também a oferecer um modelo operatório para a análise do discurso e o estudo dos textos de comunicação.
Esta obra baseia-se em sua primeira edição, publicada em 2000, intitulada L’argumentation dans le discours. Discours politique, littérature d’idées, fiction, e também na reedição de 2006, que atualizou o texto, dando maior visibilidade às situações interacionais e aos textos de comunicação. A presente edição, revista e aumentada em 2013, insiste sobre o princípio de argumentatividade que atravessa o discurso em seu conjunto. Precisando e afinando suas posições, ela integra as novidades mais marcantes no domínio da retórica e das teorias da argumentação. Paralelamente, ela segue, no domínio da análise do discurso, a atualidade de um campo de reflexão que leva cada vez mais em conta a argumentação retórica: uma revista on-line indexada em revues.org, intitulada Argumentation et Analyse du Discours (http://aad.revues.org), lançada em 2008, é testemunha disso. Por essa razão, apresenta-se uma versão modificada da questão dos “esquemas argumentativos no discurso”, e também dos capítulos sobre o pathos e sobre as figuras retóricas. É evidente que os novos exemplos foram tomados da atualidade contemporânea: discursos de Nicolas Sarkozy e de Barack Obama, debates sobre a crise financeira, práticas de argumentação na internet…
NOTAS
- Détrie, Siblot e Vérine definem a disciplina como o “domínio das ciências da linguagem que trata das unidades textuais em sua relação com suas condições de produção” (2001: 24). Eles insistem, como Maingueneau, na ligação indissolúvel entre a unidade textual e suas condições de produção, levando em conta a situação dos sujeitos, do interdiscurso, da ideologia, do gênero etc. Entretanto, a praxemática, à qual se filiam, enfatiza mais a produção do sentido do que o eixo comunicacional, que é o vetor da argumentação.
- Vimos aparecer, nos últimos anos, importantes publicações, tais como Angenot (2008) e Meyer (2008), para citar apenas esses.
- N.T.: A equipe de tradução decidiu manter as referências citadas conforme o texto original da autora. No final do livro, além da bibliografia, encontra-se a relação das obras citadas, cujas traduções existem em português.