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9 de novembro de 1904 | Revolta da vacina

Entre os dias 9 e 16 de novembro de 1904, após a ratificação, pelo diretor da Diretoria Geral de Saúde Pública, o Dr. Oswaldo Cruz, de um regulamento de vacinação obrigatória contra a varíola, eclodiu um levante no Rio de Janeiro que se transformou num verdadeiro “palco de guerra” – milhares de pessoas saíram às ruas, num enfrentamento que durou uma semana contra a polícia, o Exército, os bombeiros e até a Marinha. Os resultados dos embates foram 23 mortos, dezenas de feridos e muitos presos enviados para a Ilha das Cobras e para o Acre.

Um levante, aparentemente paradoxal, se explica se entendermos a conjuntura vivida pelas populações em processo de urbanização na recente República brasileira, assim como pela história da política de saúde pública e sanitária do Brasil em tempos e espaços mais amplos.

Na segunda metade do século XIX, quando as principais cidades brasileiras avolumavam-se num desequilibrado processo de urbanização, as questões referentes à saúde pública e ao sanitarismo entraram na pauta das elites no Brasil. Entre os pontos levantados, as epidemias eram os mais discutidos por afetarem o desenvolvimento nacional, a introdução de imigrantes e por colocarem em suspeição as condições de salubridade de seus portos e cidades. Era fato, e facilmente constatável, o avanço sistemático de doenças e surtos epidêmicos como a malária, a febre amarela, a tuberculose e a temida varíola.

A extensão da varíola e sua presença no Brasil desde o período colonial começaram a preocupar as autoridades apenas com a chegada de D. João vi em 1808. A chegada da febre amarela a partir de 1849 na capital carioca, e nas décadas seguintes, em terras paulistas, pode ilustrar os revezes dessa empreitada cheia de sinuosidades corporativas, institucionais e políticas. Demonstra que as questões sanitárias eram enfrentadas com medidas emergenciais e paliativas.

Instituições médicas e sanitárias foram criadas paralelamente a uma aparelhagem técnica e profissional, visando a medidas de intervenção social em larga extensão, tática aprofundada com a chegada da República em 1889.  Algumas das características da política sanitarista eram o uso das ações coercitivas como as de vacinação obrigatória e as tentativas de construir um muro invisível entre os grupos privilegiados e os pauperizados das cidades. Foi o que sucedeu na cidade do Rio de Janeiro, cuja política do início do século foi a de empurrar para os morros e subúrbios a parcela da população considerada “disseminadora de doenças e animalidades”.  Esse drama urbano acabou redundando em confrontos, envolvendo interpretações diversas sobre as ações sanitárias, as epidemias, bem como suas estratégias políticas.

Num trabalho historiográfico pioneiro, Nicolau Sevcenko discute esse levante em um texto altamente denunciador das ações repressivas e violentas das instâncias de poder ante os rebelados. Segundo o autor, as ações populares contra a vacinação obrigatória teriam se dado num impulso de completo descontrole, imputado pela falta de preparação psicológica da população, de quem o Estado exigia uma submissão incondicional abrindo espaço para que o descontentamento evidenciado da “massa subalterna” fosse manipulado por lideranças políticas. Consequentemente, essa visão corrobora o entendimento de uma resistência popular sem ação lógica, expressão de uma mera “rebeldia insana”.

Essa posição será refutada por Meihy e Bertolli Filho, lembrando que os estudos voltados para a história da saúde pública padeceriam de uma descontinuidade capaz de reforçar o pressuposto de que se estabeleciam, de um lado, os “senhores cultos”, amparados pelo “Estado saneador” e, de outro, a “massa ignorante”, orientada pelos “rebeldes”. Para os autores, a chave dessa contenda estaria numa análise que privilegiasse a luta histórica contra as tentativas de vacinação, desde a primeira metade do século XIX, sendo os episódios de 1904 o agravamento desse conflito.

O clássico estudo do historiador Carvalho revelou a identificação entre a população que se insurgiu e as lideranças do movimento. Em meio às transformações que vinham ocorrendo, ter-se-ia produzido uma consciência clara de que, entre os discursos proferidos e as práticas efetivadas, escondia-se o real sob o formal. Nesse contexto, para os líderes republicanos havia uma massa bestializada e incapaz de participação política, o que José Murilo rebate pondo em cena o “bilontra”, aquele que ironizava a imposição de uma “civilidade” e que estava pronto para se insurgir. As leis urbanas e morais do prefeito Pereira Passos e as imposições sanitárias de Oswaldo Cruz foram determinantes para a reação popular. Contudo, a responsabilidade da revolta teria sido deflagrada pela participação das associações organizadas operárias, conforme se encontra na postura moralista desses setores ante a vacinação, assim como no esforço de mobilização e organização de petições da Liga contra a Vacinação e em comícios, vindos do Centro das Classes Operárias.

Por sua vez, Benchimol, quando desenvolveu sua pesquisa sobre as drásticas e violentas intervenções impetradas pela renovação urbana do Rio de Janeiro na virada do século XX, detectou vários polos de atuação das autoridades médicas e sanitárias, compreendidos em sua inter-relação com os diversos eixos perscrutados pelos estudos de epidemia e sua proliferação desde o século XVIII. As disputas científicas e de poder entre os grupos ligados a Domingos Freire e Oswaldo Cruz, a influência da “formação urbana haussmaniana” de Pereira Passos, as batalhas interpretativas em torno das descobertas científicas sobre a febre amarela em Cuba, a cultura local de diversos grupos e as contradições sociais vinculadas a uma experiência de revoltas policlassicistas abrem espaço para uma visão mais profunda da complexidade que envolveu o momento tratado, atribuindo à reforma urbana, então em curso, o ponto nodal da conflagração social.

Para além das reflexões em torno desse “movimento civilizatório” na capital da República, o historiador Chalhoub propõe que se trace uma História do serviço de vacinação desde a chegada da Corte de D. João vi, em 1808, incluídas as discussões médicas sobre a eficácia da vacina antivariólica. No que se refere aos eventos de 1904, aprofundaram-se as perspectivas e os valores que podem ter informado a resistência popular à vacinação, fazendo uma incursão ao mundo das concepções e métodos africanos e afro-brasileiros sobre a “variolização”.

Atualmente, a historiografia sobre o tema procura análises mais amplas sobre a implementação da vacinação obrigatória e as múltiplas forças que a explicam nos outros pontos do Brasil. Nesse sentido, os pesquisadores Mota e Santos perceberam questões importantes sobre esse momento na cidade de São Paulo e seus efeitos no dia a dia da urbe.

Centralmente, naquilo que se refere à vacinação paulistana, as lutas em torno da cientificidade dos atos, as concepções tradicionais de doença e a expressão de descontentamento ante a vacinação, se não geraram uma revolta como a do Rio, apresentaram-se num cotidiano crivado de ações populares, que colocavam em suspensão muitas das ações médicas impetradas na cidade de São Paulo. Entre elas, é reveladora a exigência da presença policial pela vacinação obrigatória. Exemplarmente, um morador do bairro de Santo Amaro, acuado diante da “vacinação policial”, desafiou as autoridades nos seguintes termos: “Meceis pode me vaciná. Mais também vacino argum de foice!”


André Mota – Doutor em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (fflch-usp). Desenvolve pesquisa no Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da usp. É autor de diversas publicações sobre o tema.