Foi no dia 7 de janeiro de 1835 que aconteceu o primeiro ataque e a conquista da cidade de Belém do Pará pelos cabanos. A Cabanagem foi uma longa luta na região do Grão-Pará, em prol da liberdade e contra os desmandos dos presidentes de província, comandantes de armas, de milícias e diretores de aldeamentos indígenas ou de senhores de escravos, em sua maioria identificados com os brancos colonizadores.
O termo “cabano” designava os moradores de cabanas. O mesmo nome, contudo, também significava um chapéu de palha de abas largas e caídas. A palha do chapéu ou a que cobria a cabana era sinônimo de pobreza. Essa alcunha relacionava os cabanos aos trabalhadores pobres livres e escravos, que formavam a base da população do Grão-Pará. Os escravos de origem africana eram numeri-camente menos significativos na Amazônia, sendo, em 1833, cerca de 20% da população. Contudo eram fundamentais, pois a maioria deles já havia chegado na Amazônia na segunda metade do século xviii, constituindo uma população de origem africana em pleno processo de “crioulização” ou mestiçagem com índios e brancos. A concentração dessa mão de obra em propriedades açucareiras ou de produção de gado e ao redor de vilas e cidades mais povoadas como Belém aumentava a capacidade de luta e de mobilização dos negros africanos, crioulos e de seus descendentes mestiços.
Cabe lembrar, no entanto, que a presença indígena era muito forte em toda a região. Somente os chamados “aldeados”, ou seja, os indígenas em processo de catequização, somavam, em 1833, 22% da população paraense. Contudo, segundo Antonio Baena, um cronista da época, a parte majoritária da população da Amazônia era mesmo constituída por povos indígenas que viviam “sem lei, sem rito”, povoando a fração maior desse território. A colonização europeia conseguira dominar quase totalmente o vale dos rios Amazonas e Tocantins, exterminando ou dispersando inúmeros povos indígenas que ali residiam. Mesmo assim, ainda restava a esses povos, no início do século xix, um território significativo às margens de cerca de 46 rios. Do oeste do Pará até o alto rio Negro eram conhecidas cerca de 50 etnias indígenas, as quais somadas àquelas já aldeadas formavam a massa mais significativa do povo cabano.
Se de um lado a Cabanagem foi um grito de independência do povo mais simples, por outro ela não teria existido com toda sua força sem as divisões no seio da elite amazônica. Havia no Grão-Pará de 1835 uma disputa pelo controle político de uma região distante da corte carioca e que estava sendo visada por franceses, ingleses e portugueses. A elite local poderia voltar para o governo português, ou aceitar anexações ao território inglês ou ao francês na América, ou ainda podia optar por tentar uma completa autonomia. Nesse contexto, o movimento social de 1835 na antiga província do Grão-Pará fazia parte do conjunto de tantos outros que eclodiram ao longo da primeira metade do século xix no Brasil e na América do Sul. O antigo Grão-Pará ligava-se pelo mar e pelos rios aos territórios coloniais na América, mantendo comércio e trocas culturais com a região caribenha e com o que hoje chamamos de Venezuela, Bolívia, Colômbia e Peru. Dessa forma, as turbulências nesses locais influenciaram decisivamente o movimento cabano de 1835, criando na elite local e no povo cabano ideais de revoluções políticas e sociais, abolicionismo e busca pelo fim do domínio colonial. No Brasil, o movimento inseria-se no cenário do chamado período “regencial”, cuja abdicação do imperador D. Pedro i foi o estopim de lutas políticas pelo domínio da nova nação.
De janeiro de 1835 a maio de 1836, os cabanos perderam dois importantes líderes, Felix Malcher e Antonio Vinagre. O primeiro foi julgado um traidor por impor o fim da revolução e a retomada do trabalho cotidiano à revelia da maioria da população e do próprio comandante das armas cabano, Antonio Vinagre. Malcher abriu fogo contra seu comandante e acabou isolado, tendo que se abrigar em um navio da marinha imperial. Dali foi resgatado e morto pela população cabana enfurecida. Seu sucessor, Antonio Vinagre, negociou com as tropas imperiais um armistício que durou até agosto. Nesse momento, houve a segunda tomada da cidade de Belém pelos cabanos, ocasião em que Vinagre morreu em combate. O último líder cabano foi Eduardo Angelim, o qual empreendeu uma árdua tarefa de tentar compatibilizar os ideais de luta pela liberdade de escravos, indígenas e mestiços com a manutenção de autoridades e poderes políticos, considerada fundamental para o funcionamento da ordem e da produção econômica local. Nesse embaraço, Angelim manteve sempre cheias as prisões, mandando prender e julgar vários líderes negros e mestiços exaltados. Contudo, seus atos contra esse povo nunca poderão ser comparados aos do líder da reconquista imperial, o general Francisco José Soares d’Andréa. O processo de retomada de Belém e o fim da guerrilha no interior da Amazônia dizimou mais de 30 mil pessoas, além de um incalculável número de indígenas, o que fez com que o Grão-Pará só voltasse a crescer demograficamente nos anos de 1850 e economicamente apenas em meados de 1870, com a era da borracha.
Os próprios cabanos proclamaram o 7 de janeiro de 1835 como o marco inaugural de seu governo. Tornou-se sinônimo de insubordinação. O 13 de maio de 1836, data da retomada do poder pelas forças imperiais, tornou-se o marco da reconquista da Amazônia. As comemorações da reconquista perduraram por todo o período Imperial.
Foi somente por volta de 1935, época das comemorações do centenário da Cabanagem, que se colocou em xeque a comemoração do aniversário do 13 de maio. Obras escritas pelo presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, Henrique Jorge Hurley, redimensionaram a historiografia sobre o tema. Segundo o ponto de vista por ele defendido, a Cabanagem teria sido um movimento social cujas raízes remontavam à época da opressão portuguesa sobre os indígenas e tapuios do Pará. Hurley procurava introduzir na História do Brasil a figura do cabano como objeto digno de estudo. Contudo, apesar de revalorizar a data de 7 de janeiro, Hurley não desconsiderava totalmente o valor simbólico do dia 13 de maio. Para ele, se a primeira data significava a luta histórica do povo do Pará contra o processo de colonização europeia e branca, a segunda era sinônimo da reintegração, mesmo que forçada, desse povo ao seio da “nação brasileira”.
O dia 7 de janeiro – positivado como monumento da vitória cabana em 1985 – só desbancou definitivamente o 13 de maio – marco de sua derrota – quando a Cabanagem completava seus 150 e passou a ser vista como um movimento positivo e digno de nota. Nesse momento, foram publicados livros como os de Carlos Rocque, Júlio José Chiavenato, Pasquale Di Paolo e Vicente Salles. Cada qual com suas perspectivas, todos elegeram os ideais cabanos de luta pela liberdade, como bandeira para exprimir inquietações sociais e políticas do Brasil que saía de um longo período de ditadura militar nos anos 80 do século xx.
Magda Ricci – Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Pará (ufpa) e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia (ufpa). Autora de inúmeros textos (livro, artigos e capítulos de livros) sobre o período regencial e, desde 1995, pesquisa o movimento cabano na Amazônia.