A mais significativa insurreição popular da Marinha brasileira ocorreu no Rio de Janeiro, entre 22 e 26 de novembro de 1910, não sendo jamais reconhecida ou comemorada oficialmente. Na historiografia brasileira, tem sido um dos menos estudados episódios entre aqueles representativos das lutas pela cidadania plena, encampadas por setores populares, marcadamente ex-escravos e seus descendentes.
Marinheiros dos encouraçados Minas Gerais, São Paulo e Deodoro e do scout Bahia deflagraram uma revolta armada para suprimir a prática legalizada dos castigos corporais, entre os quais os mais rigorosos eram os açoites e a chibata, associados imediatamente à escravidão. Marinheiros negros, carregando panelas vazias, desfraldam uma bandeira branca com a palavra de ordem “Viva a liberdade”. Pretendiam, ainda, a diminuição da exaustiva carga de trabalho, melhoria da alimentação servida a bordo, reajuste dos soldos e folgas regulares.
A Marinha, a mais aristocrática das armas brasileiras, era marcada por forte organização hierárquica. Seus postos de comando eram ocupados exclusivamente por quadros oriundos das elites proprietárias. Na base, os extratos mais pobres da sociedade.
As péssimas condições de trabalho, de remuneração e de tratamento dispensados aos marujos colocavam a profissão entre as últimas alternativas, mesmo para os desempregados. Os marinheiros, além disso, só podiam “dar baixa” após 15 anos de serviço. Assim, o alistamento voluntário era insuficiente para suprir as necessidades de pessoal, levando à pratica do recrutamento forçado, que potencializava a revolta e a violência cotidianas nos navios.
A falta de perspectivas de ascensão, a baixa remuneração, os maus-tratos sofridos e o rigor dos métodos disciplinares incitavam as brigas dos marujos entre si e com oficiais de baixo escalão. O alcoolismo e a desobediência eram respondidos com mais violência.
A República abolira os castigos físicos retomados, no entanto, por força do Decreto n. 328, de 1890, que criou a Companhia Correcional e previa punições disciplinares, inclusive o açoite. Era o retorno da chibata. A medida resultou de pressão dos oficiais para manter a ordem sobre a população embarcada, vista como escória social, a ser mantida em regime de coerção ao trabalho e à disciplina militar.
Em 16 de novembro de 1910, o marinheiro Marcelino Rodrigues Menezes, do encouraçado Minas Gerais, comandado pelo capitão de mar e guerra Batista das Neves, foi punido com 250 chibatadas por ter ferido a canivete o cabo Valdemar Rodrigues de Sousa. Foi o estopim para a revolta, iniciada em 22 de novembro.
Rapidamente, os marinheiros dominaram os navios, muitos oficiais foram presos ou mortos. Marujos tornaram-se comandantes. Os sublevados somavam mais de dois mil homens, liderados por João Cândido e Francisco Dias Martins. A esquadra manteve a capital, Rio de Janeiro, sob a mira de canhões.
Os navios insurretos Minas Gerais e São Paulo eram as mais modernas embarcações de guerra do país, recém adquiridas da Inglaterra, com poder de fogo para causar grande destruição. A estadia dos marinheiros na Inglaterra, em treinamento para uso dos equipamentos, teria contribuído para ampliar sua consciência acerca da situação opressiva, em contraste com a importância dos conhecimentos adquiridos, condição que os tornava imprescindíveis à operacionalização dos navios. A volta da chibata converteu-se em Revolta da Chibata.
O governo ensaiou uma reação inútil ante a superioridade bélica da armada sublevada, não lhe restando senão negociar a rendição, com a intermediação do deputado gaúcho José Carlos Carvalho, comandante da Marinha. Este, recebido pelos revoltosos, relatou ao Congresso a gravidade da situação e a disposição dos marinheiros em consumar o bombardeio, caso atacados, ou se não obtivessem êxito nas reivindicações: fim da chibata e garantia de anistia, condições mínimas para a deposição das armas.
Após acalorado discurso de Ruy Barbosa a favor dos marinheiros, o Congresso votou a anistia, sancionada pelo presidente da República, Hermes da Fonseca. Em 26 de novembro, os marinheiros depuseram armas, liberaram os oficiais e os navios foram entregues aos comandantes.
A vitória dos revoltosos causou mal-estar nas cúpulas da Marinha de Guerra: oficiais mortos, superiores desmoralizados, a cidade sitiada e nenhuma punição. Para a elite dirigente, tal situação demonstrava a fraqueza das instituições e servia como exemplo para movimentos similares.
Iniciaram-se manobras de dispersão dos líderes, desembarcados, transferidos para trabalho em terra. Surgiram boatos sobre ameaça de prisões e execuções, que acabaram incitando uma segunda revolta, a de 9 de dezembro de 1910, reprimida violentamente. Esta serviu de pretexto para perseguir os marinheiros, prender, deportar e executar líderes do primeiro levante.
João Cândido, encarcerado, escapou da chacina em prisão da Ilha das Cobras, onde morreram asfixiados 16 dos 18 presos, comprimidos em cela fechada, sufocados por mistura de água e cal. Os demais participantes das revoltas foram deportados para a Amazônia a bordo do navio Satélite. Alguns foram executados no caminho e os restantes, enviados para seringais ou obrigados a se engajarem na Missão Rondon. O governo Hermes da Fonseca e a Marinha de Guerra davam por encerrada a saga dos marinheiros negros contra a chibata.
João Cândido e outros líderes, acusados de participar do segundo levante, aguardaram julgamento durante 18 meses. Além de João Cândido, foram pronunciados Francisco Dias Martins, Manoel Gregório do Nascimento, Ernesto Roberto dos Santos, Deusdedit Teles de Andrade, Raul de Faria Neto, Alfredo Maia, João Agostinho, Vitorino Nicário dos Santos e Antonio Paulo. Por falta de provas e com a brilhante defesa dos advogados, contratados pela irmandade da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, foram inocentados pelo Conselho de Guerra em 1912.
João Cândido, desligado da Marinha de Guerra, tentou manter-se em esquadra mercante, mas, marcado por sua participação na revolta, foi sistematicamente alijado dos navios. Passou a sobreviver como empregado na descarga de peixes, no entreposto de pesca da Praça 15, Rio de Janeiro.
De tempos em tempos, era procurado por jornalistas que escreviam matérias sobre o Almirante Negro, trazendo à tona o nome e as façanhas do líder da Revolta da Chibata. Depois, voltavam ao esquecimento o homem e o feito. João Cândido, velho e pobre, morreu de câncer aos 90 anos, em 6 de dezembro de 1969.
Talvez a homenagem mais significativa ao velho Almirante Negrotenha vindo da mpb, na famosa canção de João Bosco e Aldir Blanc intitulada “Mestre-sala dos mares”, que canta a glória às lutas populares e ao verdadeiro monumento em torno daquela revolta, “as pedras pisadas do cais”.
A Revolta da Chibata acabou legalmente com os castigos corporais na Marinha brasileira e simbolizou um passo na conquista da cidadania plena, por parte de um setor majoritariamente negro, destruindo uma prática escravista persistente com a República, a evidenciar o preconceito contra os descendentes de escravos no país.
Regina Behar – Professora adjunta do Departamento de História da Universidade Federal da Paraíba (ufpb), mestre em História Política pela Universidade de Brasília (UnB) e doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (usp).