No dia 13 de janeiro de 1825, o frade carmelita recifense, de cerca de 46 anos, redator do jornal Typhis Pernambucano, professor de Geometria desde 1821, o frei Joaquim do Amor Divino Caneca, foi executado por um pelotão militar ao sul da vila do Recife. Ativo participante da Confederação do Equador e, mesmo, seu principal ideólogo, exercia uma militância política que remontava à revolução republicana de 1817, pela qual passara cerca de quatro anos preso na Bahia. Libertado, juntamente com a maioria dos seus companheiros de prisão, como consequência da Revolução do Porto, voltou ao seu Recife natal e à militância política. Inicialmente, atuou no contexto do constitucionalismo luso-brasileiro, que desde setembro de 1820 vinha desmontando todo o arcabouço jurídico e político do Antigo Regime em Portugal e, por consequência, o poder absoluto da monarquia lusa e, após o 7 de setembro, dentro da existência da nova entidade política: a nação brasileira, sob a forma de um Estado imperial.
Foi depois de sua saída da prisão, em 1821, que ele começou a publicar sua obra política, revelando um pensamento certamente maturado nos anos de cárcere, mas também promovido pelas novas condições da vida política permitiam ao cidadão ter existência pública e legal.
Sua condenação à morte, por sumário julgamento de uma comissão militar que acompanhara as tropas imperiais encarregadas de combater a Confederação do Equador, estava decidida desde o dia 26 de julho de 1824, quando D. Pedro i criou tal comissão e suspendeu a vigência do § 8 do art. 179, título 8, da Constituição, ou seja, o artigo dedicado às garantias dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros. Além disso, a prévia decisão da condenação de frei Caneca comprova-se, ainda, por delegação de 31 de julho de 1824, dada pelo bispo do Rio de Janeiro e capelão-mor do imperador para a degradação canônica das ordens sacras de todos os sacerdotes implicados na Confederação do Equador e que fossem condenados à pena capital.
Foi justificada a condenação à morte de frei Caneca e de seus companheiros por ser “crime de lesa majestade”. A execução de frei Caneca, pelo caráter dramático de que foi revestida, e também pela personalidade inegavelmente heroica e fora do comum do frade carmelita, levou muitas vezes ao esquecimento do fato de dezenas de outros seus companheiros de luta, em Pernambuco e fora do estado, terem sido igualmente condenados à morte, selando com sangue a unidade territorial e também a política do Antigo Regime, que foi consolidada no governo imperial do Rio de Janeiro.
Vale conhecer o protocolar registro do escrivão do crime certificando:
[…] que o réu frei Joaquim do Amor Divino Caneca foi conduzido ao lugar da forca das Cinco Pontas, e aí pelas nove horas da manhã padeceu morte natural, em cumprimento da sentença da comissão militar, que o julgou, depois de ser desautorado das ordens na igreja do Terço, na forma dos sagrados cânones; e sendo atado a uma das hastes da referida forca, foi fuzilado de ordem do exmo. senhor general e mais membros da dita comissão, visto não poder ser enforcado pela desobediência dos carrascos […].
Desses e de outros elementos presentes em todo o processo do qual resultou o martírio de frei Caneca e de seus companheiros, quais análises são possíveis, renovando o já sabido e trazendo novos elementos até aqui pouco considerados pela historiografia?
Em primeiro lugar, o número de condenações à morte, com um total de 31, sendo 22 efetivadas e 9 não executadas porque os réus conseguiram escapar do alcance da repressão. Nenhum movimento anterior, em toda a história do império luso-brasileiro – incluindo a Revolução de 1817 – sofreu uma tão sanguinária repressão. Em seguida, a amplitude geográfica das execuções: 10 em Pernambuco, 3 no Rio de Janeiro, 4 no Icó e 5 em Fortaleza. Por que essa nação, que nascia de alguma maneira sob os desdobramentos de um rico processo constitucional, marcava sua gênese com uma ritualística política repressiva no melhor estilo do Antigo Regime e do absolutismo? A resposta deve ser buscada no longo processo de lutas políticas que foram os desdobramentos mundiais da Revolução Francesa, com períodos de afirmação de correntes mais liberais e antiabsolutistas, mas também de sua derrota e tentativas de volta a muitas das práticas do Antigo Regime.
A luta dos que haviam se empenhado na Confederação do Equador, cujo programa essencial estava na continuidade da experiência da revolução liberal iniciada no Porto em 1820, com seu projeto de limitação do poder real, implantação da divisão dos poderes e garantias dos direitos individuais, notadamente a liberdade de opinião, e não no separatismo republicano, deu-se em um momento de refluxo mundial das conquistas liberais e de tentativas de restauração da antiga ordem. A Confederação do Equador foi a ruptura armada que buscou manter as conquistas liberais iniciadas em 1820 e que D. Pedro i negara com a dissolução da Assembleia Constituinte em 1823. A trama histórica que fez das então províncias do Norte a área do constitucionalismo mais radical é bastante complexa e remonta a uma experiência cujas raízes mergulham no passado colonial e adquirem novas formas a partir da instalação da corte portuguesa no Rio de Janeiro. Mas, no plano mais imediato e próximo dos acontecimentos que nos ocupam, envolveu, sobretudo, em uma de suas fases, o confronto entre o projeto federalista dos que apoiavam a Junta de governo presidida por Gervásio Pires Ferreira (outubro de 1821 a setembro de 1822) e o ministério presidido por José Bonifácio, ainda antes do 7 de setembro. Luta que atingia também os liberais cariocas, cuja perseguição pelo Andrada, enfraqueceu o contraponto local às posteriores afirmações absolutistas de D. Pedro i e, das quais, o próprio José Bonifácio seria vítima, juntamente com os que o apoiavam e seguiam. Afastado do poder em julho de 1823, mas tendo contribuído para enfraquecer em todo o Brasil as forças liberais mais radicais, José Bonifácio foi substituído por políticos portugueses e brasileiros não apenas formados nos quadros do Antigo Regime, mas com ele identificados e profundamente hostis ao que no liberalismo clássico significava limitação do poder real, de privilégios nobiliárquicos e da alta burocracia, bem como de afirmação de direitos tal como fora consagrado na Declaração dos Direitos do Homem de 1789 e fora retomado nas bases da Constituição Política da Nação Portuguesa,de março de 1821. Bases que continuavam a ser a referência dos que se mantinham no campo das lutas por um pacto constitucional em que a soberania estivesse na Nação e o imperador fosse, como tantas vezes reafirmou frei Caneca, “sua criatura”.
A sanguinária repressão à Confederação do Equador foi a revanche tardia e, de certa maneira deslocada, contra as cortes luso-brasileiras, de D. Pedro i e de todos os que eram criaturas nostálgicas do Antigo Regime. Foi esse o aspecto de contrarrevoluçãoque o historiador José Honório Rodrigues identificou, com razão, no processo da Independência do Brasil e da montagem do Estado nacional.
São essas lutas, cujo desfecho, na gênese da nação, resultou na derrota da Confederação do Equador e na condenação à morte de frei Caneca e de dezenas de outros de seus participantes, que dão a dimensão política e o sentido dessa data, o 13 de janeiro de 1825. Elas devem fazer desse dia não apenas uma data pernambucana ou nordestina, mas uma data nacional, na longa, inacabada e dolorosa série de lutas dos brasileiros por um Estado que, enfim, seja o da cidadania de todos e não o sempre renovado instrumento dos interesses particulares e dos privilégios de poucos.
Denis Bernardes – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (usp), é professor do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco (ufpe).