Desde os primórdios da nossa existência, a inteligência humana desempenhou um papel central na superação de desafios à sobrevivência, na criação de ferramentas e na formação de sociedades complexas. Esse atributo, aparentemente único de nossa espécie, pelo menos no grau em que podemos observar, possibilitou o surgimento de sistemas filosóficos, avanços científicos e revoluções tecnológicas que moldaram e transformaram o mundo ao longo dos séculos. A partir dessas capacidades cognitivas, o ser humano consolidou sua posição como a espécie dominante, usufruindo de uma supremacia intelectual que, até então, não podia ser superada ou desafiada.
No entanto, recentes avanços no campo da computação têm deixado claro que um novo tipo de recurso tecnológico, a inteligência artificial (IA), pode colocar essa supremacia em xeque. Com suas capacidades de aprendizado, criatividade, raciocínio e tomada de decisão, a IA levanta questões sobre a exclusividade humana em aspectos cognitivos que antes eram considerados intrinsecamente nossos.
O cenário é ainda mais inquietante porque recursos de IA já integram nosso cotidiano de maneira invisível, influenciando desde a forma como consumimos conteúdo até como nos relacionamos com o mundo. Isso, por um lado, pode ser positivo, pelo universo de novas possibilidades que se apresentam, impulsionando avanços que até então só eram possíveis no mundo da ficção científica. O modo como navegamos na internet e interagimos com computadores, por exemplo, foi profundamente transformado pela IA. Sem falar nos avanços em diferentes campos como agricultura, educação e saúde, como será apresentado na seção “Onde está a inteligência artificial?” do capítulo “Essa tal de inteligência artificial”.

Por outro lado, a falta de transparência e ética no uso desses recursos pode amplificar e perpetuar problemas já existentes na sociedade. Por exemplo, questões relacionadas ao viés da IA, tratadas na seção “O lado sombrio da aprendizagem: o problema do viés”, do capítulo “A verdadeira ameaça”, podem levar as máquinas a reproduzirem comportamentos discriminatórios contra populações historicamente marginalizadas, como mulheres, negros e imigrantes. Além disso, é preciso considerar também o uso de algoritmos – instruções para que computadores executem aquilo que desejamos – capazes de moldar opiniões, capturar atenção e influenciar comportamentos, muitas vezes sem que as pessoas tenham consciência plena do grau de manipulação a que estão expostas. Esses usos da IA, sem a devida transparência podem implicar sérias violações à privacidade e outras liberdades individuais, como será discutido ainda no capítulo “A verdadeira ameaça”, na seção “Violação de direitos humanos”.
Imagine um estudante universitário usando um motor de busca – como o Google, Bing ou Yahoo – para pesquisar sobre temas acadêmicos. Os resultados que aparecem no topo da lista não são determinados por critérios puramente científicos, mas por algoritmos que priorizam fatores como popularidade, lucratividade ou adequações estruturais das páginas de internet. Isso significa que, muitas vezes, as informações mais relevantes ou precisas ficam enterradas entre os resultados. Essa dinâmica pode influenciar diretamente o que as pessoas consomem, moldando opiniões por meio de informações que, apesar de parecerem confiáveis, podem ser incompletas, distorcidas ou tendenciosas.
Considere também o impacto no mercado de trabalho. Muitas pessoas já enfrentam o desafio de competir com máquinas que executam tarefas antes realizadas por humanos, e agora também precisam lidar com sistemas de recrutamento e ofertas de emprego que discriminam com base na cor e no gênero. Nos últimos anos, as redes sociais também ilustram como a IA molda nossos relacionamentos e percepções do mundo. Sistemas de recomendação decidem o que vemos, ouvimos e acreditamos, criando bolhas de opinião e amplificando desinformação. Em casos extremos, essas plataformas são utilizadas para manipular eleições e semear divisões sociais, tudo isso com a ajuda de algoritmos cujo funcionamento a maior parte das pessoas desconhece.
E quanto à privacidade? A maioria dos dispositivos modernos, como smartphones e assistentes virtuais, coleta dados constantemente. Esses dados alimentam sistemas de IA que, muitas vezes, sabem mais sobre nossas preferências, rotinas e pensamentos do que nós mesmos. Sem compreensão e regulação adequadas, essa relação pode evoluir para um estado de vigilância constante, onde a liberdade individual é ameaçada. E tudo isso é só parte do problema. Muitas outras questões sobre esse aspecto da IA serão tratadas no capítulo “A verdadeira ameaça”.
Então, por que é tão crucial conhecer mais sobre IA? Porque o desconhecimento nos torna vulneráveis. Seremos consumidores de produtos determinados por algoritmos, trabalhadores descartados por sistemas que reforçam discriminações de cor ou gênero no mercado de trabalho e cidadãos cujas escolhas democráticas são manipuladas. Para garantir que a tecnologia seja uma extensão do potencial humano, e não uma limitação ou perigo, precisamos educar e nos educar. Saber como a IA funciona e quais são seus impactos é o primeiro passo para não apenas coexistir com ela, mas moldá-la a nosso favor.
O que está em jogo é nossa capacidade de sermos protagonistas em uma era marcada pela integração entre humanos e máquinas. Sem esse conhecimento, renunciamos à capacidade de garantir que decisões tomadas por computadores possam complementar nossas capacidades humanas, em vez de subvertê-las ou prejudicá-las.
Para ajudar nessa compreensão, indispensável para o exercício da cidadania contemporânea, este livro conduz o leitor por uma jornada instigante e acessível, que permite compreender o impacto da inteligência artificial em nossas vidas. Conectando e traçando paralelos entre essa tecnologia e a história humana, a leitura possibilita compreender os dilemas contemporâneos e as raízes das mais importantes preocupações relacionadas à IA.
Nesse sentido, com objetivo de oferecer um entendimento além do senso comum, a seção “Direto ao ponto” do capítulo “Essa tal de inteligência artificial” não se limita a explicar o que é inteligência artificial, mas também aborda questões fundamentais como as hipóteses da IA Forte e da IA Fraca, bem como os paradigmas que influenciam nosso entendimento sobre o tema. Para explorar toda a complexidade desse campo, ainda nesse capítulo, a seção “Um fascinante quebra-cabeça” apresenta uma visão geral das diversas áreas que a compõem, além de explicar o funcionamento de tecnologias disruptivas, como aprendizado de máquina, visão computacional e processamento de linguagem natural.
O texto também revela, ao longo de suas páginas, formas de identificar onde e como a inteligência artificial está integrada ao nosso cotidiano, na maior parte das vezes, de maneira pouco transparente. Ao longo do capítulo “A verdadeira ameaça”, o leitor também é desafiado a encarar o lado sombrio da IA, descobrindo como os algoritmos podem refletir, amplificar e perpetuar preconceitos raciais e de gênero já enraizados na sociedade, representar riscos à privacidade e aos direitos humanos, ameaçar estruturas democráticas consolidadas e, em casos extremos, escapar ao controle de seus criadores. Explorando dilemas éticos profundos, o capítulo “Para onde vamos?” propõe, com base na literatura científica, caminhos alternativos como o desenvolvimento de máquinas com senso moral e a criação de uma deontologia específica para a inteligência artificial.

Por fim, o capítulo “Medos, mitos e reais razões para temer” desconstrói os mitos que envolvem cenários apocalípticos difundidos pela ficção científica, como uma possível tomada de poder ou destruição da humanidade pelas máquinas, trazendo à tona os reais riscos que a inteligência artificial pode representar para o futuro da humanidade. Ao longo da obra, a pergunta central – “devemos ou não temer a IA?” – é cuidadosamente discutida, levando o leitor a encarar verdades incômodas e a encontrar respostas que podem surpreender.
Uma nova ameaça à vista: por que devo me preocupar? Essa questão provocativa, que intitula esta apresentação, serve como ponto de partida para refletirmos sobre os impactos crescentes da inteligência artificial no mundo atual. O que está sendo ameaçado? Nossa hegemonia intelectual, dignidade, bem-estar? Ao longo deste livro, serão exploradas as diferentes facetas desse recurso tecnológico, analisando seus benefícios, seus riscos e, principalmente, as respostas para essas perguntas e para lidar com os desafios que ela impõe. Afinal, a verdadeira ameaça pode não estar nos algoritmos, mas nas escolhas que fazemos ao projetá-los e utilizá-los.
Paulo Roberto Córdova é professor, pesquisador e especialista com destacada atuação na área de computação desde 2001. Professor no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina, é bacharel em Sistemas de Informação, mestre em Desenvolvimento e Sociedade, doutor em Informática na Educação, especialista em Inteligência Artificial e possui MBA em Gestão Empresarial. Seu trabalho interdisciplinar explora os impactos da inteligência artificial na sociedade, com especial atenção à ética no uso de tecnologias emergentes. Autor de diversas publicações científicas, é reconhecido como uma voz influente na construção de uma relação equilibrada entre inovação tecnológica e responsabilidade social.