Vivemos uma época de valorização dos estudos históricos no campo das ciências da linguagem, fruto do esforço de cientistas, como Sylvain Auroux (França) e Konrad Koerner (Alemanha), que, nos anos 1970, criaram as condições acadêmico-científicas para que o domínio de história das ideias linguísticas, ou da historiografia linguística, se desenvolvesse. Esse esforço implicou a criação de duas revistas, a Historiographia Linguistica (1974, Amsterdã, John Benjamins) e a Histoire Épistémologie Langage (1979, antes publicada pela Presses Universitaires de Vincennes e hoje pela Societé d’Histoire et d’Épistemologie – SHESL – e EDP Sciences, Paris), que, desde então, têm publicado centenas de trabalhos importantes da área. Mais tarde, em 1984, foi criada a sociedade inglesa Henry Sweet Society for the History of the Linguistic Ideas, que publicou um Boletim que se tornou uma revista em 2010, com o título Language & History; pouco tempo depois, em 1987, foi criada a sociedade alemã Studienkreis Geschichte der Sprachwissenschaft e, também, sua revista, em 1991, que tem o título Beiträge zur Geschichte der Sprachwissenschaft. Instituiu-se também uma conferência internacional a ser realizada de três em três anos, a fim de que as pesquisas de investigadores do mundo todo pudessem ser discutidas, que se chama International Conference on the History of the Language Sciences (ICHoLS) que, no ano de 2017, já realiza a sua décima quarta edição. Fundou-se, ainda, no Departamento de Linguística da Université Paris 7, Denis Diderot, uma unidade de pesquisa associada ao Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), o Laboratoire d’Histoire des Théories Linguistiques (Labo), centro ao qual estão associados os autores deste livro. Esse laboratório, hoje, reúne 30 membros e 52 associados, além de pós-doutorandos originários de vários lugares do mundo e estagiários, e tem atuado, nacional e internacionalmente, na produção de conhecimentos novos a respeito da história de diversas tradições de teorias linguísticas do mundo.
Os autores deste livro estiveram, desde o início, conectados ao projeto de fundação dessa área, especificamente àquele liderado por Sylvain Auroux, na França. Como teoria nova do domínio das ciências da linguagem, a história das ideias linguísticas tem de funcionar também pelo esforço de seus cientistas no sentido de divulgar seus princípios e parâmetros, além, é claro, das categorias e metodologia pelas quais a pesquisa da área pode desenvolver-se. Foi esse o desiderato dos três autores ao se engajarem no projeto da coleção “50 questões”, da editora Klincksieck, em 2010: apresentar, de modo sintético e acessível a estudantes de graduação e pós-graduação, assim como a pesquisadores que desejem começar a conhecer a área, “as questões e os problemas tratados pelos especialistas” desse domínio do saber.
Este, todavia, para além de ser um livro no qual se apresentam de modo prático respostas a “questões difíceis” é, na realidade, uma obra em que, de um lado, são enfrentadas com certa profundidade muitas das questões propostas e, de outro, são reveladas pistas bibliográficas para a continuação do estudo historiográfico. Sua linguagem é clara e direta, o que permite e facilita a legibilidade aos ainda não iniciados nos temas relativos à história das ciências da linguagem.
O fio condutor da obra é cronológico, e o discurso dos autores segue o rastro dos fatos mais relevantes para o desenvolvimento das ideias sobre a linguagem e as línguas. Assim, os autores compuseram as 50 questões sobre a formulação de ideias linguísticas iniciadas na Antiguidade. Eles falam, na contracapa original, de “momentos marcados pela invenção de conceitos, de modelos teóricos e de objetos técnicos (gramáticas e dicionários), dos quais são examinadas a transmissão, a circulação, as reorganizações sucessivas ou, talvez, [sua] ocultação”.
A tradução do livro tornou-se imprescindível por várias razões, dentre as quais é possível destacar duas: primeiro, o fato de alguns conceitos relativos à teoria da história das ideias linguísticas terem-se disseminado no Brasil e despertado interesse e, por que não dizer, curiosidade científica; segundo, porque pesquisadores e estudantes já conhecedores de pontos da teoria anunciam sentirem falta de um “instrumento” uno e coeso que reunisse as ideias fundamentais com as quais todo historiador deve ter contato. E este é o livro!
A tradução que apresentamos é fruto de uma longa colaboração franco-brasileira. Desde o ano acadêmico 2000-2001, quando fui a Paris para um estágio pós-doutoral, no âmbito de um convênio Capes-Cofecub, estabelecido pelas duas universidades estaduais de São Paulo, Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com a Université Paris 7, mantive contato com o grupo de historiadores do Laboratoire d’Histoire et des Théories Linguistiques (UMR 7597), realizando estudos e pesquisas. Nos anos 2014 e 2015, estabeleci dois projetos com Paris 7, financiados pelo Projeto Idex Brésil Sorbonne Paris Cité, coordenados pela professora Jacqueline Léon. Desde 2016, temos novo projeto em vigor, no quadro das Actions Structurantes, da Université Paris 7, coordenado pelo professor Bernard Colombat. Em todos os projetos o objetivo foi o de trabalhar com ideias linguísticas portuguesas e brasileiras, registradas nos instrumentos linguísticos, gramáticas.
O trabalho de pesquisa nessa área é realizado na USP individual e coletivamente. Individualmente, pelo projeto PQ/CNPq (Produção em Pesquisa) a respeito do estudo da formação e desenvolvimento das ideias linguísticas constantes em gramáticas portuguesas e brasileiras. Coletivamente, no âmbito do Grupo de Trabalho do CNPq “Gramática: História, Descrição e Discurso”, que conta com a participação de pesquisadores profissionais e em formação, estudantes de mestrado e doutorado. Esse trabalho desenvolve-se também pelo contato contínuo entre franceses e brasileiros, em seminários e cursos de pós-graduação, do qual nasceu a ideia da tradução deste livro. O projeto da tradução foi feito com intuito, então, de responder aos anseios dos que buscavam conhecer melhor algumas questões ou que esperavam encontrar respostas a dúvidas surgidas durante o percurso dos estudos a respeito da história das ideias linguísticas construídas na longa duração do tempo. Entendemos que as 50 questões e respostas que este livro traz vão ao encontro “do desejo de saber” de todos os interessados por esse campo do conhecimento.
A parceria com Jacqueline, francesa que conhece bem a língua portuguesa, o contato direto com Bernard e, por meio desse, também com Jean-Marie e Christian, os três autores do livro, possibilitou que esta fosse uma tradução segura. O conhecimento com os autores permitiu que dúvidas às vezes surgidas, a respeito de terminologia ou de conceitos, fossem discutidas e resolvidas. O trabalho foi longo e, para que viesse a ter o sucesso que esperamos alcançar, fizemos, durante sua execução, quatro estágios de estudo: dois de Jacqueline no Brasil (2014 e 2015), na USP, e dois nossos na França, em Paris 7, no Labo (2015 e 2016).
Para manter o estilo do livro, escrito em francês fluente e moderno, decidimos fazer uma tradução em que se lê um português padrão contemporâneo, corrente, claro e direto. Mantivemos em francês títulos das obras francesas e traduzimos aqueles outros que, não sendo franceses na origem, foram para o francês traduzidos. As citações de obras francesas antigas foram traduzidas, contudo, entendemos ser conveniente manter o texto original para que o leitor mais curioso pudesse ter contato com o estilo de linguagem do francês antigo. Na medida do possível, traduzimos os nomes latinos e gregos antigos.