Hoje proponho uma reflexão exatamente sobre isto: o caso de um texto à procura de um título.
O que você pensaria se desse de cara com um livro que atende pelo título nada convencional de A extraordinária viagem do fakir que ficou preso em um armário Ikea? A obra existe, integra uma matéria publicada pelo site “Brincando com livros” e foi escrita por Romain Puértolas.
O site é generoso nas possibilidades de títulos pouco convencionais. Por exemplo, lá está O orfanato da srta. Peregrine para crianças peculiares, de Banson Riggs; A probabilidade estatística do amor à primeira vista, de Jennifer E. Smith; A sociedade secreta da bola de cristal cor-de-rosa, de Risa Green; A menina que navegou ao Reino Encantado no barco que ela mesma fez, de Catherynne M. Valente; Foras da lei barulhentos, bolhas raivosas e algumas outras coisas que não são tão sinistras, quem sabe, dependendo de como você se sente quanto a lugares que somem, celulares extraviados, seres vindos do espaço, pais que desaparecem no Peru, um homem chamado Lars Farf e outra história que não conseguimos acabar, de modo que talvez você possa quebrar esse galho, de Neil Gaiman, cujo título, devido ao seu volume, parece ser antes o storyline da obra.
Tudo bem, o papa da propaganda, David Ogilvy, fundador do que seria o superpremiado Grupo Ogilvy, lembrou mil vezes que, na comunicação com o mercado, a função do título é prender o leitor e levá-lo para dentro do texto. No jornalismo também é assim. Com a diferença de que na propaganda não existe a presença do lead, parceiro do título na busca pela atenção do leitor. Mas a arte de criar esses truques não teria atingido um nível de sofisticação além do que se pode considerar razoável?
Sobre a criação de títulos, aprendi algumas coisas fundamentais. O título direto conta toda a história, confirmada pelo leitor quando está dentro do texto. O indireto cria expectativa. Atrai o leitor e o conduz, passo a passo, para o que deve ser revelado. A desvantagem do primeiro é que, ao revelar tudo, ele dá spoiler, conta o final do filme. Já a do indireto é o risco de cruzar com um leitor pouco disposto a se perguntar “o que será que ele quis dizer?, vou mergulhar no texto, gastar meu tempo e descobrir”. Sem isso, a mensagem se perde em algum lugar. Título com interrogação? Só se você tiver a certeza absoluta de que a resposta será aquilo que você espera para continuar a conversa. Sim, porque uma resposta negativa é o bastante para encerrar o diálogo que nem começou.
A verdade é que a criação de título não é jogo para principiantes. Que o diga o mestre e escritor, Prêmio Nobel de Literatura, Ernest Hemingway. Perguntado se os títulos acontecem durante o processo de criação de uma história, ele respondeu: “Não. Faço uma relação de títulos depois que termino o conto ou o livro – às vezes chega a uns cem. Então começo a eliminar alguns, às vezes todos.” Ogilvy costumava criar até 22 títulos para um mesmo anúncio. Imagine o que é criar cem possibilidades. Imagine, depois desse longo trabalho, começar a cortar e cortar. Agora imagine o mais doloroso: jogar tudo no lixo, admitindo que nada, nada, daquelas cem possibilidades se aproveita. Sabe o nome disso? Profissionalismo. Um nível excepcional de extrema exigência consigo mesmo. Porque, para ele, vale o pensamento que, depois, orientou Walter Clark ao criar o respeitado padrão global de televisão: “O melhor é o melhor.” Se não é o melhor, não serve.
Ainda sobre a criação de títulos já descobri mais algumas coisas. Por exemplo: ele pode nascer antes do texto. Essa prática oferece a vantagem de, uma vez criado, orientar a direção da mensagem. Mas nem tudo ali é positivo. O título criado previamente tem o poder de engessar a mente do escritor. Presa nessas poucas palavras, se a imaginação pensar em alçar voos mais altos, encontrar abordagens mais interessantes para o texto ou, quem sabe, alterar completamente o rumo da prosa, essa viagem será inviabilizada pelo compromisso assumido com o título que já existe. Portanto, caro passageiro, controle-se. E “controle-se” é péssimo quando o assunto é criação. A prática ideal é “descontrole-se” sempre que isso for interessante e adequado, isto é, se não oferecer riscos.
Mas o título pode ser criado só no final, quando o texto já estiver pronto. Hemingway lembra uma situação em que isso aconteceu. Foi no conto “Hills Like White Elephants”. O autor escreveu o título depois do texto, nascido da conversa com uma moça que estava prestes a abortar. A prática faz sentido. Senão, observe uma parede e responda: o que você vê primeiro? A pintura. E, no entanto, ela é a última coisa feita nessa construção. A propósito, qual é a pintura do seu texto e qual a capacidade que ela tem de encantar e atrair leitores?
Uma coisa que gosto de fazer é, uma vez o texto estando pronto, retirar a primeira frase e transformá-la em título. Sabe por que isso dá um ótimo resultado? É que a ligação entre título e texto fica perfeita, uma vez que, antes de ser título, aquela frase pertencia ao texto. A conexão é inegável. Por fim, um título desempenha bem o seu papel quando consegue: dar informações concretas; acenar para valores; despertar a atenção, provocar o interesse e levar à ação; gerar atitude; levar em conta o perfil do público-alvo; acenar para benefícios e valores, mais do que para atributos; propor um desafio; dar um senso de urgência – apenas para sugerir algumas das suas funções mais desejadas. Para concluir, pergunto: que título você daria para esse texto?
PrimeiЯa versão
■ Onze da manhã. O executivo está parado no semáforo, dentro do seu carro importado. Um menino, desses que moram na rua, se aproxima e pede ‘um trocado’ para comprar um salgadinho. Taxativo, o motorista nega: “Comprar salgadinho numa hora dessas? Fica comendo ‘porcariada’ antes do almoço, e depois não almoça!!”. Cruel.
Rubens Marchioni é palestrante, produtor de conteúdo, blogueiro e escritor. Eleito Professor do Ano no curso de pós-graduação em Propaganda da Faap. Pela Contexto é autor de Escrita criativa: da ideia ao texto. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao / e-mail: [email protected]