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Um ser que valora | Filipe Almeida Gomes

Ao longo da história, a definição do que é o ser humano recebeu diferentes ênfases, de acordo com os diferentes interesses de quem propunha a definição. E, a despeito da língua falada pelos proponentes de todas essas definições, o latim costuma ser utilizado para dar o tom técnico e, ao mesmo tempo, algum charme à coisa. É por isso que, a partir do que Platão nos diz sobre o filósofo sofista Protágoras de Abdera, tendemos a falar da ideia do Homo Mensura, isto é, o homem como medida de todas as coisas. Semelhantemente, é em razão dessas diferentes ênfases que, junto com Aristóteles, e ainda utilizando o latim, costumamos falar do Homo Politicus, isto é, o homem como um ser que se caracteriza pela relação com a pólis, a comunidade. Ainda aqui, caberia lembrar do Homo Sapiens, tal como definido pelo médico sueco Lineu, do Homo Oeconomicus, tão caro à filosofia utilitarista, e do Homo Faber, além de definições mais recentes como o Homo Symbolicum, o Homo Religiosus, o Homo Ludens, o Homo Loquens e o Homo Sacer.

Um ser que valora | Filipe Almeida Gomes
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Não há dúvidas de que todas essas definições têm legitimidade. Afinal, o ser humano é um ser social, é um ser que pensa, é um ser que procura aumentar suas possibilidades sem ampliar o nível de esforço, é um ser dado a fabricar etc. Há, porém, algo que reclama inclusão nessa lista dos aspectos que definem o ser humano: sua impossibilidade de não avaliar os eventos, fenômenos e/ou objetos do mundo. Em outras palavras, além de um ser que fala, um ser que se socializa, um ser que pensa, um ser que economiza, um ser que fabrica etc., o ser humano é um ser que avalia, julga, aprecia, isto é, atribui valor a tudo aquilo que, minimamente, chama a sua atenção.

Talvez, essa ideia do ser humano como um ser que valora o mundo já estivesse presente no Homo Mensura, de Protágoras. Entretanto, até pela dificuldade de acessar mais profundamente o pensamento de Protágoras – que é mais conhecido por meio da pena de seu opositor Platão –, fica difícil afirmar em que dimensão a tese do Homo Mensura se articula com a linguagem e com o fato de que esse ser que valora o faz a partir das cosmovisões que assume, de acordo como os grupos sociais que integra. A esse respeito, parecem mais oportunas as reflexões do pensador russo Valentin N. Volóchinov, amplamente conhecido como integrante daquilo que, na tradição, se estabeleceu como “Círculo de Bakhtin”.

Em que pesem confusões biográficas impostas por boatos e sem a mínima comprovação, Volóchinov é o autor do célebre Marxismo e filosofia da linguagem: problemas do método sociológico na ciência da linguagem, original de 1929. Essa sua obra, marcada pelo confronto direto com Ferdinand de Saussure – muitas vezes tido como o pai da linguística moderna –, foi traduzida para, pelo menos, nove línguas diferentes, só na década de 1970, quando do redescobrimento de seu amigo Mikhail Bakhtin. E é por isso, também, que a obra Marxismo e filosofia da linguagem ganhou espaço como uma das principais expoentes de uma reflexão linguística que vai além da estrutura das línguas, pensando, especialmente, a maneira como a linguagem é utilizada na interação social.

Em sua reflexão sobre a interação social que se estabelece por meio do discurso, Volóchinov traz à tona, como elemento-chave, o fato de que o discurso humano é, inescapavelmente, valorativo. Isso significa que todas as realizações linguísticas de um indivíduo foram impregnadas – vale dizer, engravidadas – pelos valores que esse mesmo indivíduo cultivou a partir das cosmovisões de seus grupos sociais. Obviamente, não se trata de afirmar que, na escolha das palavras, sempre é possível ver as expressões de avaliação, como o uso de vocábulos adjetivos ou o uso de vocábulos modalizadores. Trata-se, isso sim, de considerar que, mesmo quando se busca ocultar expressões que denotem avaliação, o indivíduo que enuncia não o faz de um ponto de vista imparcial, neutro, objetivo. Na verdade, até suas escolhas do material, da forma e do conteúdo de um discurso já estão, em alguma medida, marcadas pelas avaliações que esse indivíduo faz do mundo, o que inclui as avaliações que faz de seus próprios interlocutores.

Essa reflexão de Volóchinov está presente não somente em seu Marxismo e filosofia da linguagem. Ela germina, explicitamente, em seu ensaio “A palavra na vida e a palavra na poesia” (1926) e avança ao longo de outros textos, como o livro O Freudismo (1927) (no Brasil, ainda com assinatura de Bakhtin) e o ensaio “A construção do enunciado” (1930). Também por isso parece adequado dar atenção a essa reflexão que, em outro momento, Volóchinov chamou de “teoria da avaliação social na palavra”.

Certamente, apesar do incontestável charme, não precisamos de mais uma expressão em latim para definir o ser humano. Ainda assim, num tempo em que o apelo à neutralidade tem se firmado como argumento nas várias disputas de opinião, parece legítimo recordar que, em termos de discurso, tanto nas pretensões dos campos de criação da cultura – os discursos construídos na ciência, no direito, na política, na religião etc. – quanto na suposta despretensão da vida cotidiana – os discursos construídos entre familiares, entre amigos, entre conhecidos etc. – é impossível passar alheio aos valores, pois, no frigir dos ovos, o ser humano é um ser que valora.


Filipe Almeida Gomes é doutor em Linguística e Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). É professor vinculado ao Departamento de Letras e Linguística da Universidade do Estado de Minas Gerais (DELL/UEMG – Ibirité) e professor na graduação e na pós-graduação em Letras da PUC Minas.

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