Milena chegou para o trabalho. Já no elevador, a caminho do décimo segundo andar, teve um pressentimento, desses que podem até ser apenas o cansaço enviando uma pequena fatura para a alma. Verdade é que não entendeu direito o fragmento de uma conversa ouvida ali mesmo. “Deixa pra lá” – pensou.
A semana estava começando. Havia muito a ser feito em seu departamento. A empresa se mantinha em silêncio sobre a programação de fim de ano. De um jeito ou de outro, o Marketing não podia parar – precisava descobrir as necessidades e desejos do público-alvo, providenciar ou adaptar produtos e serviços, definir preços adequados, anunciar, entregar, verificar níveis de satisfação, fidelizar. Nada impossível para uma publicitária muito bem treinada pelas instabilidades do mercado, num país que já não se lembrava de como era a vida sem uma boa crise. A seu favor, Milena contava com o fato de ser recém-chegada de um fracasso – o produto era inovador, mas o contexto econômico do país não contribuía em nada com aquele lançamento. Agora uma nova força se somava a isso: o medo de envelhecer antes de conquistar outras vitórias.
Repetindo o velho costume de andar de um lado para o outro enquanto fala ao telefone, falou com clientes. Falou com o escalão superior. Falou com o pessoal da Comunicação. Teve reunião com supervisores. Falou com o dentista. Falou com o Jurídico. Tomou providências práticas. Analisou propostas. Arredondou um projeto em andamento. Quase finalizou outro. Teve reunião cancelada. Não entendeu um e-mail recebido. Viu que o site da empresa foi alterado e sentiu-se o “marido traído”. Engoliu a seco.
Circulando por um dos corredores, Milena passou em frente a uma das salas. Não sabia se lá dentro acontecia uma reunião ou apenas uma conversa de segunda para aquecer os músculos profissionais. Então parou antes de se aproximar demais. Disfarçou. Encenou uma nova verificação de um pequeno roteiro. Também não ouviu direito.
– Se acontecer essa mudança, vai atingir em cheio o pessoal do Marketing.
– Eu, inclusive, ouvi que a coisa toda está bem avançada. Fake news?
– Bem, vamos trabalhar e pedir a Deus que nada aconteça com a gente.
– Preciso atualizar meu currículo.
– Bem pensado. Preciso ver o meu também.
Milena foi até a sacada do escritório e olhou para lugar nenhum, onde não viu nada. Respirou um pouco mais fundo. Duvidou da autoconfiança que procurava manter a todo custo. Encenou uma normalidade que não existia, pelo menos era isso o que sentia. “Não sei se gostei dessas conversas. Primeiro o elevador…” – pensou. Apertou os lábios estreitos, colocados dentro de um rosto com uma grande presença de sardas queimadas pelo sol – o bronzeador nunca ia para a praia. E foi pegar mais um café sem açúcar. O clima na cafeteria interna estava levemente muito pesado. Estranho. Milena não estava sozinha lá dentro. Ou estava, sei lá. Preferiu ouvir em silêncio.
– Eu só não sei que raio de “lista” é essa. Quem me contou foi o Raul, do Financeiro, mas ele não me adiantou mais nada.
– Lista de compras é que não é, disso eu tenho certeza – disse um dos interlocutores, soltando uma gargalhada opaca. Saíram.
De volta para o seu posto, Milena se esforçou para que a cabeça também voltasse. Sem parar no lugar, novamente fez ligações. Falou com clientes. Falou com o escalão superior. Falou com o pessoal da Comunicação. Teve reunião com supervisores. Não falou com o Jurídico. Tomou providências práticas. Usando a metade da potência de entusiasmo, analisou propostas. Teria arredondado um projeto em andamento. Não se dispôs a finalizar outro. Teve reunião cancelada. Engoliu a seco. Tremeu. Tomou um copo de água, colocou de novo a estola verde de seda e saiu para almoçar.
Um pouco tímida, sentou-se no único espaço que restou na mesa que ficava próxima a alguns colegas de uma área com a qual mantinha pouquíssimo contato. Mas pôde ouvir o que diziam, apesar dos ruídos típicos do ambiente em horário de almoço. Eram outros os personagens, quase desconhecidos.
– Vazou uma informação, ninguém confirma, que a fusão está por aí. Acho que vão esperar a eleição pra anunciar a novidade. A “novidade”? Ou a bomba?
– E você acha que não vai ter demissões?
– Se entendi direito, do pouco que ouvi, o outro Marketing é especialista em bater metas. E até já ganhou um prêmio importante.
– Portanto…
– Portanto…
Milena almoçou depressa; ainda teria de comprar um novo xampu para cabelos cor de trigo. As sobrancelhas bem feitas, emoldurando olhos da cor de ardósia, não combinavam com um cabelo danificado pelo sol daquele mês repleto de verão e de tantos verões.
Por volta das 14 horas, soube que o Presidente acabava de convocar uma reunião de emergência para logo mais. Só com diretores. “Uma reunião de emergência… É… e a gente só vai saber alguma coisa amanhã” – pensou. Estava enganada. A notícia dando conta de alguns resultados foi a última pauta daquele dia.
Logo que acordou, no dia seguinte, Milena se lembrou de que precisaria conquistar um novo crachá para chamar de seu. Competidora e afeita ao poder, enfrentaria uma empreitada relativamente bem mais difícil quando na jornada se carrega o peso definidor chamado “meia-idade”.
Fosse em outros tempos, teria ido até a banca e comprado um grande jornal, onde começaria a procura por uma nova colocação. Por um longo tempo seria Procuradora do Estado, como na anedota feita por alguns. Mas isso não tinha a menor graça.
Rubens Marchioni é Youtuber, palestrante, produtor de conteúdo e escritor. Autor de livros como A conquista e Escrita criativa. Da ideia ao texto. [email protected]. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao