Peça-lhes para falar sobre a máquina de datilografia. Era um equipamento rudimentar, por meio do qual você digitava um texto e ele já aparecia impresso. As possibilidades quanto às cores: preto e vermelho. Diagramação? Nenhuma. Ponto.
Uma grande fabricante dessas geringonças barulhentas era a Olivetti. Ela chegou à ousadia de produzir esses equipamentos na sua versão elétrica. Nos Estados Unidos, sua concorrente, a IBM, foi mais longe. Criou verdadeiros objetos de desejo, com suas esferas, um privilégio para poucos. Dentre esse grupo seleto se encontravam as secretárias da diretoria e da presidência.
Mas, voltemos à italiana Olivetti. Nos meus tempos de seminário, curso de Filosofia, por generosidade extrema de um padre, me tornei o feliz proprietário de um exemplar, modelo Studio 45, zero quilômetro. Um luxo.
A empresa era acometida por uma “miopia de marketing”, termo cunhado por Theodore Levitt, economista nascido na Alemanha e mestre na Harvard Business School. Quando lhe perguntaram qual era o seu ramo de negócio, ela respondeu: “Fabricar máquinas de escrever e calcular.” Vieram os computadores, as pessoas deixaram de comprá-las, e a empresa fechou. Se fizessem a mesma pergunta à Rede Globo, empresa com uma visão clara de posicionamento mercadológico, ela certamente responderia algo como “Produzir entretenimento”. Hoje isso é feito por meio de emissoras de televisão, no formato que conhecemos. Mas se um dia esse recurso deixar de existir, se for trocado por outro, como as máquinas de escrever, ela não será forçada a fechar as portas. Porque estará preparada para continuar oferecendo serviços de outra maneira. Basta ver que a interrupção na gravação de novelas e na produção de programas de auditório não a impediu de seguir em frente. Flexível, ela apenas se adaptou à nova realidade.
Agora pense. Se um mês atrás alguém lhe perguntasse qual é o seu “ramo de negócio”, qual seria a sua resposta? Trabalhar das oito as dezoito no escritório? Almoçar no restaurante bem próximo do seu local de trabalho? Jantar fora, com a família, com alguma regularidade? Aulas igualmente regulares de segunda a sexta? Fazer um churrasco, reunindo amigos e familiares, quase todo final de semana? Uma pelada e o comparecimento ao estádio no dia em que seu time vai jogar? Carnaval obrigatório? Um cineminha no sábado, depois do shopping? Missa ou culto no domingo, porque nenhum lugar é melhor que uma igreja para se falar com Deus?
Talvez você diga “sim” a todas essas perguntas. Mas, lamento informar, e querendo ou não, o “computador” acaba de ser inventado, modelo Covid-19. Com ele, chegou a exigência do isolamento social e uso de máscaras. Os cuidados quase extremos com a higiene pessoal e de ambientes que você frequenta. O varejo fechado em grande parte, restando apenas os serviços essenciais e os que ainda desafiam o que pode vir pela frente. Isso, sem contar a mente obtusa do presidente. Mergulhado num baixíssimo nível cultural, esbraveja contra tudo aquilo que a OMS e a comunidade científica preconizam como forma de minimizar os danos causados pela Covid-19. Algo como se apenas ele, no mundo inteiro, soubesse tudo e estivesse correto. Ou, ainda, os que, nas redes sociais, afirmam que o vírus é uma criação da Globo e do PT para derrubar Bolsonaro. Como se uma emissora de TV e um único partido tivessem o poder de criar um vírus e paralisar o planeta, apenas para provocar a queda de um presidente. [Nota: eu não sou petista, apenas não perdi o juízo].
Quando surgiu o computador, os saudosistas protestaram contra essa máquina diabólica – o desconhecido, aquilo que não dominamos porque ainda não adquirimos a devida habilidade, sempre causa rejeição. Eles queriam de volta as suas máquinas, mesmo que no pacote viesse uma infinidade de limitações, impensáveis num processador de textos e numa impressora, ainda que tecnologicamente despretensiosos.
Em tempo de coronavírus você tem um posicionamento claro? Deseja fabricar máquinas, objetos limitados, ou produzir entretenimento, um conceito amplo, que pode ser revisto? Lamentar o modo de vida que ficou no mês passado ou pensar que o trabalho e o estudo a distância podem ser uma grande solução para tantos problemas enfrentados, sobretudo nas grandes cidades? Reclamar pelo fato de que deve usar máscara ou começar a perceber que esse novo acessório pode se tornar algo interessante? Hoje ele é rudimentar. Mas será sempre assim? Os designers vão responde que não.
Os criativos sempre gostam de fazer duas perguntas que se equivalem: “E se?” “Por que não?” A propósito, convido você a fazer um exercício de criatividade. Ele consiste em olhar para algo aparentemente impensável e perceber aí alguma coisa que todos viram, mas ninguém enxergou. Pense, por exemplo, uma máscara que pode ser comprada numa loja de departamentos, da mesma forma como se compra calcinhas, cuecas, cintos, gravatas etc. Desarmado, faça a pergunta: “Por que não?” Se estiver aberto a novas ideias, é possível que tenha uma reação in-esperada como “É mesmo, isso faz sentido! Por que não pensei nisso antes?” Porque tudo indica que este é o novo normal.
Pronto, o que era apenas uma exigência acaba de se tornar algo desejável, deixando para trás a ideia de uma imposição que tem a assinatura pesada do Ministério da Saúde, da OMS etc. A propaganda deixará de dizer coisas, em tom de advertência, como “Use máscara para não morrer de Covid-19” e vai sugerir “Use a máscara XPTO e revele a identidade de alguém que está preparado para viver em um novo mundo.” Pronto, mudou o paradigma. Mas a gente precisa dar o passo. Até o dia em que a sociedade, enfim repensada, nos dispense do uso desse acessório, de carros, de combustíveis fósseis etc. Mais do que empresas e marcas, as pessoas também precisam saber como desejam ser lembradas e ter um posicionamento claro, para não fechar as portas.
RUBENS MARCHIONI é palestrante, publicitário, jornalista e escritor. Eleito Professor do Ano no curso de pós-graduação em Propaganda da Faap. Autor de Criatividade e redação, A conquista e Escrita criativa. Da ideia ao texto. [email protected] — https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao