Fechar

Templos ou escolas? | Jaime Pinsky

Na Idade Média o mundo ocidental era conduzido a partir de determinações e valores divinos. Em nome de um deus absoluto, onipotente e monocrático, sabia-se o que era certo e o que era errado. Como nem sempre esse deus estava à disposição de toda a população, ele tinha prepostos, os religiosos, que falavam em seu nome, explicando para todos o que podia e o que não podia. Hoje, vendo um blog no youtube, onde uma senhora explica para seu suposto público “o que pode e o que não pode entre quatro paredes”, achamos a coisa toda hilariante. Como uma rotunda madame do interior de Minas, desconhecida, sem especialização acadêmica na área, se permite orientar sobre práticas sexuais que devem ser definidas apenas pelo prazer que podem me proporcionar, por questões de higiene e, é claro, por minha própria consciência? Mas quando a religião era a fonte norteadora das práticas sociais, quem ousasse se rebelar contra as ordens da Igreja corria o risco de ser queimado vivo em fogueiras alimentadas pela “sabedoria” dos doutores que passavam ordens divinas para o povaréu.

Seguir ordens divinas sempre implicava em alguns problemas práticos. O principal era: que ordens seguir? Como a Bíblia, na verdade, não foi escrita por deus algum (por favor, não fiquem escandalizados, não estou revelando segredo algum, qualquer estudioso sabe disso), mas por diferentes pessoas, em línguas diferentes, ao longo de muitos séculos, há ordens diferentes, divergentes e até conflitantes para quem se dispõe a segui-la literalmente. No catolicismo esse problema foi resolvido ao não se recomendar a leitura da Bíblia, mas seguir pia e cegamente o Papa, que na sua infalibilidade (e acreditar nela é condição sine qua para ser aceito nas hostes da Santa Madre Igreja) orientava e orienta os fieis sobre “o que pode e o que não pode”. Lutero, ao se rebelar contra o que considerou corrupção na Igreja (padres, bispos e cardeais vendiam um lugarzinho no céu em troca de uma grana na conta da corporação, ou em sua própria conta) orientou seus seguidores a lerem os textos por si próprios, sem intermediários. Sua atitude foi ótima para o desenvolvimento do capitalismo (pessoas mais letradas, com mais espírito crítico e iniciativa), mas logo foi torpedeada pelo calvinismo fundamentalista que trocou, em muitos casos, os milagres da Igreja pelo carisma de um novo tipo de pastor, “tradutor” das palavras divinas, fundamentalista e repressor. Não por acaso o desenvolvimento da Europa é a história da libertação dos grilhões da Verdade (com maiúscula) revelada e a busca da verdade racional. É nesse processo que homens e mulheres se afastam da palavra divina e descobrem o conhecimento que traria, como de fato trouxe, o controle das guerras, das pestes e da fome, como lembra bem o historiador Yuval Harari.

Crer e seguir uma religião são coisas distintas e, incrivelmente tem muita gente que não se dá conta disso. Crer é uma decisão íntima que algumas pessoas tomam. Por iluminação? Por fraqueza? Por necessidade de transcendência? Já pertencer a uma religião é uma decisão de caráter social. Não é um acaso o fato de a maior parte das pessoas nascidas no interior de Portugal pertencer à religião católica, enquanto que nascidos na Egito são predominantemente muçulmanos. Não é questão de crença, é questão de adesão grupal, de noção de pertencimento. Práticas sociais como “ir à igreja” (ou ao templo, à mesquita, à sinagoga) são apenas isso: práticas sociais, não atitudes reveladoras de crença.

Então, como se crê cada vez menos no mundo ocidental, corre-se atrás de verdades que a investigação, a pesquisa, o método científico permitem e recomendam. Foi o avanço do conhecimento científico e tecnológico que fez com que o mundo superasse problemas como a mortalidade infantil, a baixa produção de cereais, a morte em massa por conta de epidemias. Foi graças aos avanços promovidos pelo conhecimento racional que aprendemos a drenar pântanos e a levantar enormes edifícios sem o sacrifício de dezenas de milhares de operários, como ocorria no Egito Antigo, ou na Mesopotâmia. Não foi com rezas, e sim com conhecimento científico que inventamos o stent e o marca-passo, que permitem que tanta gente estenda sua vida útil em até dezenas de anos.

Não tem saída. Se quisermos, mesmo, um país mais democrático, mais justo, mais rico, com mais oportunidades para todos, a saída está em escolas públicas laicas de qualidade e em uma política de ciência e tecnologia coerente e consequente.


Por Jaime Pinsky: Historiador, professor titular da Unicamp, coordenador do livro Brasil: o futuro que queremos, diretor editorial da Editora Contexto.