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Somente amanhã | Rubens Marchioni

A agulha insensível presa na roupa de Thereza havia sido deixada por descuido da costureira, e ela feriu o braço direito da sua cliente.
– Droga, essa merda machucou meu ombro! – disse enquanto provava o que usaria no casamento de Roberta. Thereza relevou. Uma viagem a esperava assim que deixasse o ateliê de costura.  

Miguel a aguardava no aeroporto, onde já havia comprado as passagens para o Nordeste. Viajariam a trabalho, assessorando uma empresa do ramo de vinhos finos. A preocupação de Miguel com o atraso de Thereza começou a aumentar. Ligou para ela, mas não conseguiu falar. Ligou de novo, e nada. Ligou de novo. Dessa vez Thereza atendeu, mas sua voz estava alterada – lenta e acelerada. A ligação caiu e isso o incomodou mais ainda. Desligou e ligou de novo. Agora a voz cortada era quase inaudível, embora fosse possível distinguir alguma coisa do que ela dizia.

Somente amanhã | Rubens Marchioni

Duas crianças passaram diante dele, uma loira, segurando uma boneca loira, e uma preta, segurando uma boneca preta, coberta por cabelos ricamente ondulados – a mente envolvida pela cor parda de sua pele o convidou à reflexão. Miguel se perguntou se a mãe teve dificuldade para convencer a filha negra a aceitar aquele brinquedo como sua filhinha. Tentou retomar a leitura de um livro de Yuval Noah Harari para saber como seria o futuro do bicho homem no maltratado planeta Terra que por vezes se afoga em labaredas.

No entanto, suas considerações psicológicas, filosóficas e antropológicas sobre esse e outros assuntos foram abortadas. Pragmático, pensaria nisso depois de finalmente ouvir a voz de Thereza explicando seu atraso e dizendo se precisava de ajuda.

O fato é que um grande muro desabou no mesmo instante em que ela passava e atingiu seu carro que, sendo jogado para o lado, arranhou a pintura da porta direita de um carro de luxo, preto, reluzente e estrelado. Enquanto e por causa disso, um pouco a frente, o túnel estava parado, nenhum veículo dava apenas um passo sequer. Seu atraso foi de apenas uma hora e 25 minutos, tempo bastante para comprometer qualquer acordo e horário.

Enquanto Thereza falava, ainda com dificuldade, Miguel apanhou na mochila um caderno quadriculado onde tomava notas desorganizadas de palavras ouvidas e sensações que o atingiam de alguma forma. Em casa, usando a imaginação, ensaiaria transformá-las em imagens que complementassem seu sentido e escrever alguma coisa sem pretensões literárias.

A poucos metros dali, apoiado numa escada com desejos de ser Magirus, um homem fazia a manutenção de um painel. Descuidado, deixou o capacete cair no chão. Miguel ficou bastante assustado e tenso. Ninguém espera um ruído grave e, ao mesmo tempo, intenso como esse num aeroporto, ambiente que sempre evoca aquela história do passado em que dezenas de pessoas tiveram um final trágico antes ou depois da aterrissagem da aeronave, a contragosto do piloto. Não vou falar aqui sobre as histórias de atiradores solitários, que não é o caso – basta de tragédia por hoje.

Miguel fez um esforço ainda maior para entender cada palavra de Thereza. Esforçando-se, ela prometia chegar o mais rápido possível para tentarem embarcar naquele dia mesmo – não podia ser diferente, havia um evento regional programado.

Enquanto isso, Miguel visualizou a imagem suave e quase infinita das dunas onde pretendia arejar a cabeça, depois de uma semana complexa que ainda estava na quarta-feira e a perspectiva era de que o sábado, após o almoço, chegaria em 15 dias, isso numa previsão otimista. Trabalhar e ensinar a trabalhar com Marketing é cansativo, tudo muda muito depressa, já faz tempo que Philip Kotler foi destronado de seu posto supremo sobre o tema.

Verdade é que Miguel não suportava mais esperar pela passagem do tempo e por Thereza, distante a, no mínimo, 300 quilômetros do aeroporto – era o que lhe parecia, como acontece quando o termômetro marca 10 graus e a sensação térmica é de 3. Ou seja, estresse da melhor qualidade.

Para não surtar, precisou administrar-se, corpo e alma, porque a pressão arterial costumava subir pelo elevador, enquanto a solução dos problemas conhecia apenas as escadas, cheias de curvas e um corrimão cujo rangido não falava de coisas como segurança.

Do lado de fora, um helicóptero decolava e Miguel desconhecia seu destino. Olhou-o e desejou estar dentro dele a caminho do seu destino, sentindo que pouco a pouco seus planos iam para o espaço.

A zona de conforto, na sala reservada da Diretoria, assessorado por profissionais que se reportavam a ele, sempre dispostos a entregar mais do que pedia, havia ficado para trás, lá longe, enquanto ele apanhava para reorganizar sozinho a vida depois do imprevisto, ele e seu sobrenome seu próprio gabinete de crise. Assim que chegou, Thereza embarcou, ofegante, no degrau da primeira escada rolante que passou por aí e foi ao encontro do colega.

– Poxa, pensei que não fosse chegar mais! – disse Miguel. – É o velho medo de avião? É a auto sabotagem de novo?
– Também pensei, acredite, também pensei – respondeu Thereza. Agora sua boca parecia ainda menor, naquele corpo compacto. Tirou os óculos de sol cheio de grife e lentes verdes iguais aos seus olhos. Ao lado do colar vermelho, tudo formava um conjunto que se conversavam muito bem. Só um detalhe destoava: provar o desconforto daquela situação que lhe exigia mais precisão do que testar um vinho para certificar sua qualidade.

Thereza tentou um caminho.

– Seu cabelo cor de café está mais bonito – disse, procurando aplacar a ira de Miguel por meio de uma carícia ao seu narcisismo crônico.
– É, pode até estar bonito, mas preciso perder uns quilinhos. Aceita um cafezinho, pra relaxar?
– Não sei, será que devemos? Como está a venda de passagem para o Nordeste?
– Não sei, preferi não ficar muito preso nisso, porque você poderia não chegar.
– Um cafezinho rápido e vamos comprar uma passagem, certo?
– Garçom, por favor, dois expressos pequenos, estamos com muita pressa…
– Sim, doutor, é pra já, é pra já, pode sentar que eu sirvo.
– Sentar!? Sentar!? Tem certeza que é pra sentar? Meu amigo, você não está entendendo!
– Calma, calma, a gente pode pular o cafezinho, o que acha? – disse Thereza, tentando organizar a situação sob o ruído da pressão interna do momento e daquele provocado pelo chega-e-sai de aeronaves que os deixavam para trás, mesmo aquelas com destino a Europa, Estados Unidos ou Ásia.

Não conseguiram embarcar. Só haveria passagem disponível para o próximo dia, num horário um tanto desconfortável para eles e praticamente inútil.

Num silêncio perturbador, deixaram o aeroporto. Dessa vez Thereza deixou de lado sua marca registrada: contar histórias. Havia em Miguel uma luta infernal para manter o autocontrole e evitar uma explosão cardíaca com resultados nada saudáveis para ele.

Miguel chegou a casa, ele e seu rosto que agora parecia mais quadrado. Um pouco tensas, a mulher e a filha mais velha abriram calmamente a porta. Assimilaram sua expressão facial e permaneceram em silêncio para que ele falasse o que e quando desejasse falar. Ou não falasse nada pelo tempo que julgasse adequado. No dia seguinte, teria muito o que falar na e a partir da empresa.

O diretor frustrado atirou o paletó sobre o sofá, afrouxou os suspensórios, jogou-se ali mesmo e pediu que lhe preparassem uma dose de uísque sem tanta moderação, servido num copo que se aconchegava em suas mãos angulosas. A tulipa, a câmera fotográfica e a revista semanal sobre a mesa de centro cederam espaço para que ele esticasse as pernas sem cuidados.

Do alto dos seus 16 anos bem vividos, Estopa, a cachorra marrom e branca, que um dia fora encontrada pelo filho em um posto de combustível abandonado, ainda filhote e agora conhecendo a segurança de um lar, não tinha viagem marcada, não iria a lugar nenhum, nem mesmo para dar assessoria e nada sabia sobre vinhos. Ela apenas se deitou ao lado de Miguel, acomodando a cabeça nas suas pernas e, lambendo-lhe sua mão, para lhe garantir que estavam juntos e nada disso seria interrompido. O gesto canino era como a renovação de um pacto celebrado desde sempre. Relaxaram.

Na TV, uma nova partida de vôlei começava e a vitória seria celebrada com medalha de ouro naquela Olimpíada.


Rubens Marchioni é palestrante, produtor de conteúdo e escritor. Autor de livros como A conquista Escrita criativa. Da ideia ao texto[email protected]. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao

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