Fechar

Sobre a definição de fascismo

No decorrer da História, os termos e as palavras mudam de significado. Expressões que tinham um sentido no século XVIII podem, hoje, continuar em uso, mas indicando algo diferente. Essa é a razão pela qual, para os historiadores, é fundamental entender o significado original de uma palavra em um livro ou documento do passado, para evitar o que é um dos nossos maiores pecados, ou seja, o anacronismo. Tais alterações às vezes são naturais, ocorrendo por acaso ou para acompanharem as mudanças na sociedade. Em outros momentos, contudo, a mudança de significado é proposital e visa confundir os atores sociais e políticos. É o caso, por exemplo, dos termos “anarquia” e “amor livre”. No seu sentido original, anarquia era a utopia de uma sociedade livre da exploração de classe e sem o Estado, enquanto amor livre indicava o relacionamento entre pessoas sem a intervenção da Igreja e livre dos preconceitos sociais. Os inimigos do anarquismo, contudo, os transformaram em sinônimos de baderna e de promiscuidade.

No momento atual, é possível perceber como dois termos acabaram por sofrer o mesmo processo. Um deles é “comunismo”. Hoje em dia, nada é mais fácil do que ser chamado de “comunista”. O comunista é qualquer um que defenda, por exemplo, saúde e educação públicas, que o Estado coloque limites na ação dos mercados privados e taxe as grandes fortunas ou que seja favorável a certas políticas sociais. O comunismo, em alguns círculos, se tornou um espectro tão grande que até mesmo a Rede Globo, os grandes bancos, as revistas da Turma da Mônica e o STF se tornaram comunistas. Os anticomunistas, e outros círculos da direita, fazem esse exercício de confundir as coisas já há pelos menos um século e ele prossegue, com o objetivo óbvio de gerar um “grande medo” na sociedade e mobilizar as pessoas contra as mudanças sociais.

Sobre a definição de fascismo
Leia um trecho aqui

No campo da esquerda, o fascismo sofreu um processo semelhante, que também começou pelo menos um século atrás: “fascista” se tornou sinônimo de violência e autoritarismo e de oposição ao novo. O fascista hoje é qualquer um que faça críticas, mesmo que parciais ou limitadas, a certas pautas dominantes na esfera cultural, que tenha dúvidas sobre algumas políticas sociais ou que questione interpretações da História ou da política que se tornaram dominantes. No limite, não apenas Trump e Bolsonaro são fascistas, mas também Putin, Lula, Alckmin, os apreciadores de música clássica, os síndicos de prédio e tantos outros.

Qualquer pessoa que queira usar esses termos nesse sentido pejorativo, para atacar os seus adversários, é livre para fazê-lo. No entanto, essa expansão excessiva de significado nos impede de ver a realidade como ela é. No limite, se tudo é fascismo ou comunismo, esses termos já não significam mais nada. Recuperá-los como conceitos é fundamental para que eles voltem a ter utilidade.

Conceitos são uma representação mental que permite categorizar e organizar o conhecimento sobre o mundo. Ao criar um conceito, estamos delimitando o que um fenômeno (social, político, cultural etc.) é e, ao mesmo tempo, o que ele não é. Quase sempre, os conceitos se alteram no decorrer do tempo e sofrem questionamentos por aqueles que o utilizam. Mas eles tendem a ter uma solidez maior, uma densidade que norteia a sua utilização e que permite identificar os fenômenos com mais precisão.

Ao pensarmos no conceito de comunismo, por exemplo, fica claro o que ele é e o que ele não é. Um comunista é uma pessoa ou partido que defende uma revolução para mudar radicalmente a sociedade, com a socialização dos meios de produção e a eliminação da burguesia. Os comunistas discutem suas propostas e ideias entre si e estão em contínuo debate com outras forças de esquerda, mas eram e são facilmente reconhecíveis no decorrer do último século. Do mesmo modo, o fascista é uma pessoa que defende uma remodelação da sociedade em um sentido totalitário, mas bebendo nas antigas tradições da direita. Os fascistas também dialogam e se relacionam com outras forças da direita, mas também sempre foram reconhecíveis frente a elas. Ao considerarmos comunistas os que defendem ciclovias ou fascistas os que o preferem a arquitetura clássica à moderna, o debate se torna raso e pouco convincente.

Claro que o conceito de fascismo deve ser sempre questionado e pode ser relativizado ou mesmo ampliado, especialmente quando levamos em consideração as suas alterações no decorrer do tempo. Os partidos e movimentos de extrema direita, ou ao menos alguns deles, que surgiram depois de 1945, por exemplo, devem ser chamados de fascistas, neofascistas ou pós-fascistas? Trump e Bolsonaro se aproximam do fascismo ou seria um exagero? São questionamentos válidos, mas sempre que permaneçamos em um debate conceitual, sem cair na superficialidade.

No meu livro Fascismo, agora lançado pela Editora Contexto, meu esforço é justamente recuperar o fascismo enquanto conceito, deixando para trás o uso instrumental e as generalizações sem fundamento. Convido a todos à sua leitura e ao aprofundamento a respeito do fascismo, do que ele pretendeu ser e do que ele efetivamente foi, historicamente.


João Fábio Bertonha é professor da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e pesquisador do CNPq. Doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e livre-docente em História pela Universidade de São Paulo (USP). Autor de vários livros e artigos, publicou, pela Editora Contexto, Itália: presente e futuro, Os italianos, Patton, Os canadenses, Imperialismo e Fascismo além de ser coautor do Dicionário de datas da História do Brasil.

Deixe uma resposta

Your email address will not be published.