Historiadora da Universidade de São Paulo retrata a mulher nos Anos Dourados, a partir de publicações femininas e dados estatísticos do período. O grande ideal da época era se preparar para o casamento
Por Carolina Samorano, para o Correio Braziliense
Nos Anos Dourados, período entre 1945 e 1964, muita coisa mudou no Brasil. As mulheres chegaram ao mercado de trabalho, a economia do Brasil experimentou um sopro de crescimento, a capital foi transferida do Rio de Janeiro para Brasília. Para boa parte da população feminina, no entanto, a vida dourada era cheia de regras: arrumar um marido “bom partido”, sob pena de se tornar uma “solteirona” — moças de 25 já eram consideradas de “certa idade” —, era fundamental, com ou sem amor. Tudo bem também se o marido desse escapadas aqui e ali. Era da “natureza” do homem ter “aventuras”, como as traições eram mencionadas, e cabia à moça o esforço de manter em pé o matrimônio a qualquer custo.
As regras e os hábitos da época, que podem parecer absurdos para meninas que vivem hoje seus 20 e poucos anos e estão ainda longe de pensar no vestido branco, provavelmente soam familiares a tias e avós que viveram os anos 1950 no Brasil. Carla Bassanezi Pinsky, historiadora pela Universidade de São Paulo, retratou esse perfil de mulher ideal — da “boa esposa” —, no seu último livro, Mulheres dos Anos Dourados (Editora Contexto, 400 páginas). Passeando por censos, pela legislação da época e pelas páginas das revistas femininas que circulavam, como Cláudia e Jornal das Moças, ela resgata as piadas, os estereótipos e os conselhos de comportamentos dados às mulheres para que as vidas delas não saíssem da linha. À Revista, ela conta o que encontrou durante as pesquisas e o que mudou ou não de lá para cá na forma como a mulher ainda é retratada nas publicações femininas.
É possível fazer uma leitura do papel da mulher na sociedade nos chamados Anos Dourados apenas analisando as publicações femininas da época?
Eu não analisei apenas as revistas, o livro traz também dados de educação, por exemplo, da legislação trabalhista da época, da mulher no mercado de trabalho, então na verdade é um diálogo das mensagens dessas revistas com o que estava acontecendo na “realidade”. Por exemplo, naquela época, as mulheres já estavam nas universidades, já tinham até superado os homens, mas as revistas algumas vezes aconselhavam para que tivessem cuidado, para que não deixassem sua cultura aparecer tanto para não humilharem o marido ou para que isso não comprometesse a chance de casamento. Na época, não existia divórcio. Então, quando as publicações dizem para elas que a separação é perigosa, que elas precisam manter o casamento a qualquer custo, existe na legislação da época uma realidade correspondente a esse pensamento.
Confira o livro “Mulheres dos Anos Dourados”
Com quem essas revistas dialogavam? Quem era essa mulher dos Anos Dourados?
As revistas são uma porta de entrada para a época, mas elas também não conversavam com todas as mulheres, e sim com as leitoras, que eram as moças de classe média, as brancas, com condição de abrir mão de um trabalho remunerado para se dedicar ao lar, como exigiam os padrões da época etc. Mas elas não refletem a mulher de classe baixa. É uma mulher idealizada.
De 1945 a 1964, há um intervalo grande de tempo. O que mudou no período?
Essa é uma época de grande otimismo. A guerra já tinha acabado, o Brasil vivia um período mais democrático, as pessoas tinham muita fé no futuro do país. As datas são sempre arbitrárias, mas, no fim dos anos 1960, as coisas começam a mudar. O movimento feminista cresce, mas o que a gente chama de Anos Dourados é o período de ouro do casamento tradicional. Apesar disso, algumas coisas mudam sim. A mulher começa a ter ascensão maior ao mercado de trabalho, as oportunidades educacionais também aumentam… Antes, nos anos 1940, exigia-se que a mãe educasse as crianças, ensinasse moral, bons costumes, higiene e se sacrificasse pelos filhos. E, no fim dessa época, nos anos 1960, já existe uma preocupação maior de que a mulher seja feliz. O American Way of Life, do ideal de consumo, da casa bonita, do papai e da mamãe tirarem férias com os filhos, terem um carro bacana, por um lado reforça o ideal da mulher doméstica, mas por outro também acaba exigindo que ela também contribua com o orçamento familiar. Isso abre um pouco mais a cabeça das famílias.
E o papel do homem? Qual era, segundo essas publicações?
Sobre eles, as revistas diziam que tinham que ter boas intenções, que deviam ser capazes de sustentar a casa, de manter a honra da esposa e das filhas. Para as mulheres, era mais claro. Elas diziam como a mulher devia se comportar no flerte. A dupla moral sexual da época dizia que os homens podiam e deviam ter suas aventuras sexuais e suas “experiências”, enquanto a garota devia se preservar até o casamento e se comportar de uma maneira que não fizesse as pessoas pensarem mal dela.
Como era a divisão de papéis no casamento?
As revistas martelam muito na tecla da felicidade conjugal. Havia muitas matérias do tipo “os 10 mandamentos da felicidade conjugal”, “siga essas leis eternas para conseguir a felicidade no casamento”. Na verdade, são coisas que a mulher deve fazer para deixar o homem feliz no casamento, para que ele não vá embora, porque a infidelidade masculina é uma coisa biológica, segundo os padrões da época. As revistas daquele período definiam que o amor é considerado importante para o casamento, mas combatem muito as paixões, pelo perigo de se apaixonar pelo homem errado, por aquele rapaz que “não tem futuro”, por alguém que é de outra classe social, ou por um cara que não gosta de trabalhar, não vai sustentar a família. Então, elas são românticas, mas sempre estão puxando para a racionalidade, para preservar o casamento.
A separação tornava a mulher uma pária da sociedade?
Ela era malvista, podia ser discriminada, as mulheres casadas achavam que elas seriam um perigo para seus casamentos. Eram consideradas fracassadas. As revistas mais moderninhas até aconselhavam coisas do tipo “se você é separada, tem que se comportar para não levantar suspeitas contra você, educar seus filhos com honra”, e por aí vai. Mas, nessa época, não havia divórcio. A lei do divórcio no Brasil é dos anos 1970. Então, quando as leitoras escreviam pedindo conselhos, era meio “olha, não tem jeito mais”.
As revistas femininas de hoje conservam algo dessas publicações clássicas?
Durante minhas pesquisas, encontrei um teste das revistas dos anos 1950 com o título “Sairá ele com você uma segunda vez?”. E as perguntas eram algo do tipo “Quem paga a conta?” “Se ele pede vinho, você toma junto ou só um pouquinho?” “Se ele faz uma piada de duplo sentido, você ri ou finge que não entendeu?” E aí tinha as respostas, com os conselhos. Folheando uma revista atual, vi um teste parecido, testando se o cara sairia com você novamente, perguntando se você transa na primeira noite ou não etc. Quer dizer: mudou muita coisa, mas, ao mesmo tempo, a revista não está perguntando o que você tem vontade de fazer, está dizendo como você deve se comportar.