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Hipóteses que buscam explicar universo primordial e teorias sobre universos paralelos são “religião mascarada de ciência”, diz autora de divulgação científica

Docentes do Instituto de Física Teórica comentam obra e sustentam que o modelo cosmológico atual foi desenvolvido e testado ao longo de décadas e concorda com uma imensa quantidade de dados observacionais – acusá-lo de ‘religião’ e ‘mito’ é uma crítica “radical”.

Dona de um canal no You Tube com mais de um milhão de inscritos onde se compromete a abordar conceitos científicos “sem exageros nem constrangimentos quanto a verdades inconvenientes”, Sabine Hossenfelder ainda é um nome novo no mercado editorial da divulgação científica no Brasil. Mas é seguro afirmar que, nas poucas semanas desde que seu livro ‘A ciência tem todas as respostas?’ (Editora Contexto) foi lançado, a física alemã de 47 anos já conseguiu assegurar uma boa dose de atenção graças às opiniões muito particulares que emitiu em entrevistas a alguns grandes veículos da mídia nacional.

Hipóteses que buscam explicar universo primordial e teorias sobre universos paralelos são “religião mascarada de ciência”, diz autora de divulgação científica

“Muitos divulgadores tentam deslumbrar as pessoas, especialmente na cosmologia. Mas acho que as pessoas ficam em parte confusas e em parte decepcionadas quando descobrem que quase tudo isso é bobagem. E eu quero que as pessoas saibam a verdade. Quero que saibam o que realmente está acontecendo na física, o quanto sabemos e o que é blá-blá-blá”, declarou ao entrevistador de um jornal de São Paulo.

Aqui, não cabe a ressalva de que a pesquisadora do Instituto de Pesquisas Avançadas de Frankfurt (FIAS) teria se excedido na conversa com o jornalista. O mesmo argumento está apresentado de forma bem clara no texto de ‘A ciência tem todas as respostas?’. “A maioria das hipóteses para o universo primordial, por exemplo, são apenas histórias complicadas desnecessárias para descrever qualquer coisa que observamos. O mesmo acontece com as tentativas de descobrir por que as constantes da natureza são como são ou com as teorias que introduzem universos paralelos não observáveis. Isso não é ciência. É religião mascarada de ciência sob o disfarce da matemática”, escreve a autora.

Não se pode dizer que ela fale do que não conhece. Hossenfelder atua na área de fenomenologia da gravidade quântica e lidera o grupo de pesquisa Superfluid Dark Matter do FIAS. Há 10 anos, dedica-se à divulgação científica, realizando palestras, participando de eventos e alimentando seu canal do YouTube. Em 2018, lançou seu primeiro livro, intitulado ‘Lost in Math’ (Perdido na Matemática), inédito no Brasil, que despertou bastante polêmica, a ponto de ter sido acusado de fornecer munição aos segmentos de negacionistas da ciência.

O acúmulo de vivências na comunicação científica estimulou-a a seguir em frente com questionamentos e críticas a respeito da forma como os conteúdos da física são apresentados à sociedade. Um aspecto problemático, diz ela, seria uma tendência a apresentar a física de forma tão abstrata que ninguém entende as razões pelas quais uma pesquisa é iniciada. Por isso se atribui a tarefa de esclarecer aos seus leitores e espectadores o que realmente pode ser considerado válido em diferentes áreas da física tendo como parâmetro a possibilidade – avaliada por ela, ressalte-se – de que os pesquisadores possam efetivamente trabalhar com dados experimentais.

É essa visão que ela adota no livro recém-lançado no Brasil para devassar variados temas da cosmologia e da física, incluindo Cosmologia Cíclica Conforme, Universo Ecpitórico, Gênese Geométrica, Grande Rebote, Inflaton, teorias de cordas, e outros mais. Seu intuito é o de apontar os problemas que têm caracterizado a abordagem destes temas pelos autores de divulgação científica até agora, e compartilhar com o leitor seu juízo sobre o que seria irrelevante para a física, para a matemática ou mesmo para a ciência como um todo. E, como vimos, ela não se furta a classificar alguns destes conceitos de “religião mascarada de ciência sob o disfarce da matemática”.

Mas haverá mesmo embasamento para avaliações tão pesadas, que parecem bordejar o tom de acusação, tanto da divulgação científica quanto do trabalho de áreas de pesquisa bem consolidadas? O Jornal da Unesp solicitou a três pesquisadores ligados ao Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (IFT-Unesp) que comentassem algumas das visões sustentadas pela autora alemã.

Hossenfelder aponta como problemática, e bastante comum, certa abordagem dos conceitos da mecânica quântica, que se consagrou como “explanações favoritas de terapeutas alternativos, mídias espirituais e vendedores de óleo de cobra”. Paradoxalmente, estas abordagens no mínimo questionáveis são encaradas com naturalidade pelo público, incapaz de discernir entre o que é ciência propriamente e o que é bobagem.

Essa crítica é considerada adequada pelo físico Horatiu Nastase, que é pesquisador do Instituto de Física Teórica. Ele reconhece que, hoje em dia, os termos ‘física quântica’ e ‘energia do vácuo’ estão sendo empregados sem a menor conexão com a realidade que ensejou originalmente sua formulação. “Especialmente no Brasil”, diz ele, “e isso irrita qualquer físico.” Porém, não enxerga muitos caminhos para escapar dessa situação. “A física quântica é a base de toda ciência natural moderna. É preciso que continuemos a falar sobre ela, para que fique clara a distinção entre o modo como é empregada no âmbito da ciência e seu uso como ‘tempero’ pelos charlatães”.

Ao tratar das teorias que buscam explicar o que pode ter ocorrido nos momentos iniciais do cosmos, a autora não economiza munição. “(…) todas essas hipóteses sobre o universo primordial (…) são pura especulação. São mitos de criação modernos escritos em linguagem matemática. Não apenas não existem evidências para eles, como também é difícil conceber alguma evidência que poderia decidir o debate em favor de alguma dessas hipóteses”, escreve.

Nastase diz que rotular parte dos estudos em cosmologia como ‘bobagem’, ‘mitos modernos’ ou ‘religião mascarada de ciência´ é algo que poderia acontecer – “e acontecia, às vezes, durante as décadas de 1960 e 1970” –, quando havia bem menos dados experimentais disponíveis para embasar as formulações teóricas. “Embora já naquela época houvesse boa pesquisa disponível”, diz o cientista. E cita os estudos do pesquisador russo Andrei Sakharov, Prêmio Nobel da Paz e responsável pelo desenvolvimento da bomba termonuclear na antiga União Soviética. Dentre outras pesquisas, Sakharov foi responsável por estabelecer três condições – usadas até hoje – que devem ser satisfeitas para que um processo envolvendo partículas possa produzir excedente de matéria no Universo Primordial.

Uma comparação semelhante à proposta por Nastase pode ser encontrada no artigo ‘The Relativity of Wrong’ (A Relatividade do Erro), de autoria de Isaac Asimov, publicado em 1989. Asimov cita como exemplo a teoria de Isaac Newton, que no século 17 defendia que um corpo massivo, submetido a forças gravitacionais, tornar-se-ia uma esfera, mas apenas se não estivesse girando. Caso contrário, haveria ação de força centrífuga que alteraria o formato esférico. Tal teoria só seria comprovada no século 18. A partir do exemplo, Asimov sustenta que assumir em definitivo que uma ideia é completamente ‘certa’ ou ‘errada’ é uma atitude incorreta. Além disso, o desenvolvimento da física teórica não se dá no mesmo ritmo, nem em paralelo, com o avanço das ferramentas disponíveis para comprová-la efetivamente. Por isso, simplesmente descartar todas as ideias que não possam ser submetidas a experimentação neste momento pode frear os avanços da ciência.

“Há um século, não sabíamos sequer se a Via Láctea era um conjunto de estrelas cercadas por vazio infinito ou se era mais uma galáxia de incontáveis galáxias desse vasto Universo”, diz George Matsas, docente do IFT-Unesp e pesquisador da Teoria Quântica de Campos em Espaços Curvos. “Hoje sabemos a resposta disso e muito mais! Todo esse avanço se deu graças a muita sensatez e pitadas de insensatez. Excessos de um ou de outro levam à estagnação ou ao delírio”, defende. 

Outro dos alvos de Hossenfelder é a chamada Teoria da Inflação, que postula que o universo passou por um período de extremo crescimento, denominado de fase inflacionária, quando tinha meros 10-35 segundos de existência. “Apesar de especulativa, a teoria inflacionária faz previsões, como a de que o modelo deve ser espacialmente plano. E isso é observado”, diz Rogerio Rosenfeld, pesquisador de Cosmologia do IFT-Unesp. Nastase também cita como exemplo de sustentação empírica para a cosmologia experimentos como os do satélite de ‘Planck’, “que forneceu dados mais precisos sobre o espectro das flutuações da radiação cósmica de fundo”. Esses são exemplos de como, com o passar do tempo, o desenvolvimento tecnológico permite que venham à tona informações que antes eram pouco acessíveis.

Rosenfeld ressalta que o modelo cosmológico atual foi desenvolvido e testado ao longo de décadas e “corrobora uma imensa quantidade de dados observacionais”. “Tenho certeza de que Sabine não tem problemas com esses fatos e modelos bem estabelecidos”, diz. “Hoje em dia, a cosmologia é uma ciência bem desenvolvida”, concorda Nastase, ponderando que acusá-la de ‘religião’ e ‘mito’ é uma crítica “radical”.

Ainda que discorde da avaliação da alemã sobre o estado da pesquisa na cosmologia, Rosenfeld concorda com a perspectiva crítica que ela propõe.  “Especulações que sequer podem ser testadas, como a teoria de multiversos e todas as teorias sobre o instante inicial da criação do Universo, são altamente especulativas, pois ainda não existe uma teoria quântica da gravidade.” Ao abordarem esses assuntos, diz, é recomendável que os divulgadores o façam com cuidado. Mas lembra também que ideias que em certo momento eram apenas especulativas podem assumir um caráter observável posteriormente. “A comprovação da existência das ondas gravitacionais levou décadas, e demandou grande financiamento, até que surgissem os frutos dessa busca em 2015 e o consequente Prêmio Nobel”, lembra.

Nastase Certas diz que algum grau de incerteza teórica é um componente essencial na caminhada da ciência. “Ainda é difícil distinguir experimentalmente entre os muitos modelos cosmológicos que possuímos. Mas, pouco a pouco, entendemos como fazê-lo. É assim que a ciência evolui”, diz.

É preciso ressaltar, porém, que Sabine procura equilibrar seu tom crítico recorrendo a ferramentas como contextualização e ponderações destinadas ao leigo. Por várias vezes, alerta o leitor que nem tudo envolvendo as áreas de pesquisa que analisa é tão limitado quanto ela parece descrever, e que não se propõe a oferecer respostas definitivas. Ao longo das páginas, sempre surge um “mas veja bem” para contrabalançar a série de apontamentos contra este ou aquele estudo. É uma atitude cuidadosa, mas que pode passar despercebida numa leitura feita apenas para alimentar preconceitos bem enraizados.

E a autora conclui a obra reconhecendo o espaço da ciência para que possa explorar o desconhecido, sem a obrigação de apresentar todas as suas descobertas num sistema ‘preto no branco’. Também reconhece que a imprevisibilidade é um elemento estrutural da pesquisa; graças a ela, nosso conhecimento periodicamente experimenta reviravoltas que mudam completamente nossas concepções da realidade. E abre espaço também para elogios: “longe de roubar o encantamento, a ciência oferece novas coisas para nos maravilharmos (…) ela expande nossas mentes”, escreve.

Fonte: Jornal da Unesp por Frederico Carvalho

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