Justiça e religião buscam estabelecer o que é certo e o que é errado. A primeira trabalha com leis e punições, a segunda com dogmas e punições. Leis, em princípio, decorrem do estado civilizatório de determinada sociedade, possuem historicidade, são revogáveis e assumidamente falíveis. O tempo muda os costumes (como já dizia Cícero), os costumes mudam as leis. A verdade de hoje pode ser obsoleta amanhã (que tal a legislação a respeito de dejetos de cavalos no centro de nossas cidades, por exemplo?). Mais ainda, pode estar superada pelas novas práticas sociais. Não é por outra razão que o Direito é uma ciência social. Não é ciência exata, não é ciência da natureza, diz a respeito de práticas que ocorrem nas sociedades humanas concretas.
Dogmas, por definição, possuem outra natureza. Se um fiel acredita que uma verdade foi revelada pelo seu deus, não há como provar o contrário, uma vez que a verdade que ele ostenta não é relativa (ao tempo histórico, aos costumes), mas absoluta. Basta ter fé para carregar aquela verdade no peito. Quando aquele que tem fé também possui poder para impor sua fé estamos em uma situação explosiva. Como ele crê, acredita que deve fazer com que todos, por bem ou por mal, partilhem de suas verdades. Mais ainda, ele acredita ser sua obrigação espalhar suas verdades (não podemos nos esquecer, para ele suas verdades não são verdades passageiras, transitórias, são verdades divinas, são as verdades). Com o poder em mãos o crente transforma-se em fanático, disposto a matar (ou morrer) para impor suas verdades.
Ao longo da História podemos identificar diferentes situações em que fanatismo acrescido de poder perpetrou barbaridades sem par. Nossa civilização ocidental tentou, muitas vezes, impor suas verdades. As inquisições portuguesa e espanhola, os cruzados, os conquistadores da América não podem ser esquecidas quando pensamos em consequências terríveis da união de fé com poder. Com as ideias da Revolução Francesa o Ocidente foi se tornando mais laico, e a separação entre Estado e religião foi conquistando quase toda a Europa e Américas. As pessoas têm o direito de professar a religião que quiserem, mas não há religiões oficiais, apesar de alguns ranços simbólicos ainda permanecerem em alguns lugares. Praticar uma fé por escolha, não por imposição, praticar sincretismos existentes ou inventados por cada um, ou não praticar fé alguma é uma conquista da cidadania.
Infelizmente isto não aconteceu no mundo muçulmano. Em grande parte dos países onde o islamismo é majoritário, não há liberdade para praticar outras crenças. Em alguns deles é até proibida a construção de templos cristãos. Imagine-se a grita se isto ocorresse em algum país europeu, ou americano, com relação a construção de mesquitas…
Claro que é preconceituoso e muito equivocado culpar todos os muçulmanos por atentados perpetrados por terroristas islâmicos. Seria o mesmo que acusar todos os brancos americanos pela loucura de um racista contra um grupo de negros no sul dos EUA. Mas não se pode negar que racistas americanos não estão no poder e dificilmente chegarão a estabelecer uma politica de estado ou de governo de cunho racista. Já não se pode dizer o equivalente no mundo muçulmano. Estados constituídos, como a Arábia Saudita, ou o Iêmen, assim como grupos altamente organizados (como o Estado Islâmico, com raízes solidamente implantadas na Síria, no Iraque e na África Saariana) assumem enfeixar fé e poder para implantar suas ideias a ferro e a fogo.
Durante parte da Idade Média ocidental, quando a Europa estava mergulhada no atraso decorrente do poder eclesiástico articulado ao feudalismo, as ideias e práticas trazidas pelos conquistadores muçulmanos pareciam uma aragem fresca na pasmaceira econômica, social e cultural. Muitos dos conquistadores tiveram a visão de permitir uma liberdade religiosa bastante grande (considerando a época, é claro). Médicos e filósofos islâmicos, cristãos e judeus trabalhavam juntos; cidades como Córdoba e Granada eram centros culturais acima das religiões. Por circunstâncias históricas, que não podem ser atribuídas simplesmente ao imperialismo ocidental (vilão cômodo de ser acusado), mas têm a ver com a estrutura de poder que não se modernizou em grande fatia do mundo muçulmano, hoje esta parte do planeta ficou para trás, mesmo quando e onde o dinheiro corre fácil.
Ainda são poucos os islâmicos que pregam uma reinvenção da religião e sua adequação ao mundo moderno.
É de se esperar que o coro engrosse. Parece uma boa ideia.
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Por Jaime Pinsky, historiador, professor titular da Unicamp, diretor da Editora Contexto, autor de Por que gostamos de história, entre outros livros.
Gostei muito dos três primeiros parágrafos do texto.
E ainda do trecho:
“[…] Por circunstâncias históricas, que não podem ser atribuídas simplesmente ao imperialismo ocidental (vilão cômodo de ser acusado), mas têm a ver com a estrutura de poder que não se modernizou […].”
A chamada da atenção para as responsabilidades dos próprios muçulmanos não é algo comum de se ver. Mesmo assim, considero pertinente a questão: qual a participação do imperialismo ocidental, e de seus adversários que também atuam no Oriente Médio, na manutenção dessa estrutura de poder? Lembrando que ambos agem em associação com as oligarquias locais.
No site de cinema IMDb, encontrei o seguinte pensamento do cineasta Peter Greenaway:
“To be an atheist you have to have ten thousand times more imagination than if you are a religious fundamentalist. You must take the responsibility to acquire information, digest and use it to understand what you can.”
Também muito instigante é a leitura de “O ódio à democracia”, do filósofo francês Jacques Rancière (Boitempo Editorial, 2014).