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Reforma e contrarreforma | Rui Luis Rodrigues

Em meados do século XX, tornou-se comum considerar, nos meios cultos do Ocidente, que a religião de modo geral estava com seus dias contados. A ciência e a formação de um pensamento crítico ao longo dos dois séculos anteriores teriam sepultado de vez as preocupações religiosas, cada vez mais tidas na conta de incompatíveis com uma sociedade moderna e sofisticada.

Esse quadro parecia refletir a realidade: na Europa e na América do Norte, as igrejas cristãs perderam influência, com significativo decréscimo de praticantes, a cada semana, em seus cultos. De certa forma, o materialismo parecia triunfar: fosse, no Ocidente, um materialismo cientificista, moldado pelo consumo capitalista e propositor de um ateísmo implícito; fosse, para além da chamada “Cortina de Ferro”, um materialismo marxista, também estribado na ciência e em um ateísmo militante.

Houve reações por parte das igrejas cristãs. Boa parte de uma “teologia de vanguarda”, de origens europeias, procurou aceitar as perspectivas trazidas pela ciência do século XIX, propondo como alternativa uma versão “existencialista” do cristianismo, despojada da crença efetiva em realidades sobrenaturais. Esse movimento começou nos protestantismos europeus, notadamente nas faculdades alemãs de Teologia, mas logo ganhou adeptos também entre os teólogos católicos, em especial após o Concílio Vaticano II (1962-1965).

Reforma e contrarreforma | Rui Luis Rodrigues religião

Numa postura frequentemente reproduzida pela intelectualidade, as análises faziam tábua rasa do que ocorria nos segmentos “não-cultos” da sociedade. Ignorava-se, por exemplo, que desde o início do século XX uma versão específica da fé protestante – o movimento pentecostal – vinha apresentando expressivo crescimento. Enquanto, de fato, as igrejas protestantes mais tradicionais ficavam à míngua nos contextos europeu e norte-americano, as igrejas pentecostais regurgitavam de gente. De igual modo, a partir de 1967 a própria Igreja Católica passou a experimentar crescimento numérico em suas fileiras, em função da chamada “renovação carismática”, a versão católico-romana do movimento pentecostal.

Nada disso, porém, parecia abalar os analistas, que continuavam a falar em “fim das religiões” e a identificar o Ocidente como “pós-cristão”. As vertentes pentecostais estariam se desenvolvendo principalmente entre as populações mais pobres e menos instruídas, de forma que, para esses intelectuais, o abandono das preocupações religiosas também por esses segmentos seria questão de tempo (e do aprofundamento da escolarização).

Mas a década de 1960 gerou mudanças que acabaram por sepultar essa convicção tranquila de que as religiões estavam com seus dias contados. Juntamente com o movimento hippie, uma valorização renovada das religiões orientais (hinduísmo, diferentes formas de budismo) começou a se fazer notar no meio da própria intelectualidade ocidental, além de atingir as principais figuras da cultura pop. Formas de cristianismo também experimentaram uma nova vitalidade: além do pentecostalismo e do movimento carismático católico, vários grupos protestantes mais tradicionais testemunharam, nesses anos, um revival em parte ligado à incorporação de crenças e práticas pentecostais. O tão falado “desencantamento do mundo” cedia espaço, aparentemente, a um mundo cada vez mais reencantado. E não seria exagero ver sinais disso na popularidade encontrada, nesse período, por escritores como Hermann Hesse (com seu Jogo das Contas de Vidro, romance obrigatório na mochila de todo hippie) e J. R. R. Tolkien.

O século XXI tem assistido a uma difusão impressionante das religiões de origem cristã, sobretudo no chamado “sul global”. E como, cada vez mais, esse “sul global” se faz presente no “norte”, na forma de imigrantes que procuram espaço e oportunidade nas antigas metrópoles coloniais, a própria Europa conhece hoje um inusitado crescimento das religiões cristãs ao mesmo tempo em que muitas igrejas, mais tradicionais, seguem vazias ou transformadas em museus e locais de concerto de música erudita. E o crescimento da religião islâmica, na Europa e em outras partes do mundo, apenas reforça a percepção de que a maior parte da humanidade ainda compartilha perspectivas religiosas sobre o mundo e a vida.

Diante desse cenário, reafirma-se a importância de compreender as origens e dinâmicas desses movimentos que levaram à constituição do cristianismo como realidade múltipla e plurifacetada. Em boa medida, tais movimentos tiveram origem num fenômeno também plural: as reformas religiosas que, no século XVI, provocaram significativa divisão no seio da cristandade ocidental. Narrar, de forma sintética, as origens desses vários movimentos de reforma, procurando compreender suas principais características, foi o que procuramos fazer em nosso livro Reforma e contrarreforma, recentemente lançado pela Editora Contexto.

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Obviamente, entre os sujeitos e ocorrências que marcaram esse fenômeno no século XVI e a realidade religiosa dos grupos cristãos de nossos dias há uma grande distância; a situação atual não pode ser explicada apenas, e diretamente, pelo que ocorreu no século XVI. Mas é evidente que a compreensão desses movimentos já velhos de cinco séculos é fundamental não apenas para que possamos entendê-los em sua singularidade histórica (esse é o grande objetivo do fazer historiográfico), mas para que possamos também conhecer problemas, anseios e expectativas que se encontram na base das inquietações religiosas de nosso próprio tempo.


Rui Luis Rodrigues é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. É professor de História Moderna no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde dirige o Modernitas – Núcleo de Estudos em História Moderna. É especialista no Humanismo renascentista e nas relações entre religião e política nos primeiros séculos da Época Moderna.

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