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Reforma e Contrarreforma | Lançamento

Um passeio pelas grandes cidades de nossos dias nos coloca em contato com a extraordinária diversidade religiosa existente no interior do cristianismo. Catedrais, pequenas capelas, salões comerciais com portas de correr em cujo interior há algumas fileiras de cadeiras e um púlpito, locais de culto que se parecem com grandes shopping centers e conjugam, ao espaço de adoração, instalações educacionais, obras assistenciais e praças de alimentação. Esses são apenas alguns lugares associados à religião cristã que o olhar do observador é capaz de perceber. Tal proliferação de espaços relacionados ao culto cristão parece indicar a importância dessa religião em nossos dias. No entanto, ao longo do século XX falou-se muito sobre o fim da religião cristã no mundo ocidental. Na Europa, a frequência nas cerimônias religiosas caiu de maneira assombrosa; templos foram vendidos, alguns continuaram apenas como locais de realização de concertos de música clássica. Seria isso uma manifestação do “desencantamento do mundo” (Entzauberung der Welt) mencionado por Max Weber como uma das características da modernidade ocidental? O Ocidente teria realmente se tornado “pós-cristão”?

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Contudo, enquanto na Europa e na América do Norte igrejas católicas e protestantes foram fechadas, ou permanecem quase sem frequentadores, outras denominações abriram suas portas. Passeando numa tarde de sábado em Paris, no Champs de Mars, é possível ver um grupo animado de jovens entoando mensagens cristãs em melodia contemporânea, envolvente; é possível escutar a pregação feita por um jovem de origem africana, sua figura alta e esbelta em pé, recortada contra o céu azul de uma tarde clara de outono, enquanto dezenas de pessoas sentadas ao redor, diretamente sobre o gramado, acompanham o sermão com interesse. Trata-se de um dos vários grupos evangélicos que experimentam crescimento acelerado em plena capital da França. É verdade que boa parte dos ouvintes desse grupo, a começar pelo pregador, são imigrantes oriundos das antigas possessões coloniais francesas. Nas regiões do “sul global”, o cristianismo tem crescido de forma intensa nas últimas décadas. Dali veio boa parte do total de 1,5 milhão de jovens que se reuniram em Lisboa, em agosto de 2023, para a Jornada Mundial da Juventude, o maior evento da Igreja Católica Romana em nossos dias.

Não houve, portanto, erradicação da fé cristã. O fenômeno da revivescência religiosa, de fato, ultrapassa as fronteiras do cristianismo. Desde o final dos anos 1960, o interesse pelo oculto e pelo esotérico voltou a se afirmar, em meio à sociedade materialista do Ocidente. Parte não pequena da intelectualidade ocidental, em sua maioria rompida com o cristianismo, passou a ver com bons olhos as religiões do Extremo Oriente como o hinduísmo e as várias correntes do budismo. Em plena Europa ocidental, o islamismo tornou-se uma das religiões mais praticadas.

A rigor, a própria religião cristã sempre foi marcada pela diversidade. Ao longo do primeiro milênio de sua existência, essa diversidade pode ser percebida nas diferenças litúrgicas e doutrinárias entre o cristianismo latino e o bizantino, ou nas distintas práticas eclesiais de igrejas como as da Etiópia e do sul da Índia.

Mesmo com toda essa expressiva diversidade, a divisão experimentada pela Cristandade latina a partir do século XVI foi um fenômeno de consequências imensas. Deixou um saldo negativo de violência e intolerância, ao mesmo tempo em que, através de instituições como as Inquisições e outros aparatos de controle, ajudou a desenvolver dinâmicas de disciplinamento social típicas da Época Moderna. Esse cenário de controle onipresente da religião seria modificado apenas de forma muito lenta. Num texto publicado em 1734, o filósofo francês François-Marie Arouet, conhecido como Voltaire (1694-1778), referiu-se à Bolsa de Valores de Londres como o lugar onde “o presbiteriano confia no anabatista e o anglicano aceita a promessa do quacre”. A frase de Voltaire sintetiza os resultados de um percurso histórico longo e complexo. No século XVIII, para as sociedades ocidentais, a religião estava se tornando matéria de consciência individual, de “foro íntimo”; adeptos de credos protestantes diferentes podiam encontrar-se para negociar na Bolsa, embora continuassem a considerar uns aos outros candidatos ao fogo do inferno. Apenas um século antes dessa frase, no entanto, tal convivência seria difícil: anabatistas e quacres ainda eram perseguidos, puritanos eram alijados do ministério pastoral pelos bispos anglicanos e, no coração da Europa, entre 1618 e 1648, um conjunto de guerras que ficou conhecido como Guerra dos Trinta Anos travou-se entre protestantes e católicos.

As reformas religiosas do século XVI trouxeram à diversidade já presente na religião cristã um incremento expressivo. Os saldos não foram apenas negativos. Num contexto em que o culto da Igreja Católica Romana tornara-se rígido, pronunciado num idioma àquela altura já incompreensível para a maioria dos habitantes do continente europeu, foram esses movimentos de reforma que colocaram a liturgia e a Bíblia no vernáculo. A Igreja Católica reagiu a eles sublinhando a importância da continuidade: a missa continuaria em latim e a Bíblia deveria ser lida apenas na tradução autorizada, a Vulgata de São Jerônimo (?-420). Somente no século XX, com o Concílio do Vaticano II (1962-1965), a Igreja Católica aprenderia a lição oferecida mais de 400 anos antes pelos protestantes, colocando seu culto nas línguas dos povos que o praticavam.

O objetivo deste livro é oferecer uma visão de conjunto das reformas religiosas do século XVI. Como acontece em qualquer texto de síntese histórica, foi preciso ser seletivo e efetuar recortes em favor do tipo de visão abrangente que a síntese permite.

Devemos ser críticos da antiga noção ciceroniana de historia magistra vitae (“a História mestra da vida”), já que quase nunca o ser humano aprende com o passado; todavia, a compreensão do que ocorreu pode nos ajudar a entender melhor o mundo que temos diante de nossos olhos. “De onde veio tanta diversidade? Não são todos cristãos?”, pergunta-se o caminhante que percorre as ruas de alguma de nossas grandes cidades. A leitura deste livro fornece algumas respostas.

Quando se levanta o assunto das reformas religiosas do século XVI e vêm à tona os nomes de seus principais personagens – nomes europeus –, é quase inevitável que se pergunte: “Mas esse não é um tema eurocêntrico?” No texto que se segue, pouco se trata de acontecimentos ocorridos fora da Europa geográfica, o que torna a suspeita ainda maior. Na verdade, nenhum tema é eurocêntrico; eurocêntrico pode ser o olhar que se lança sobre qualquer tema. No entanto, para nossos objetivos, o que interessa é frisar que a experiência do nosso caminhante pelas ruas de São Paulo, Paris, Luanda, Seul ou Bangkok já deveria constituir uma resposta. A Época Moderna, período no qual se deram os fenômenos de que trata este livro, foi marcada, no dizer do historiador Serge Gruzinski, por intensos contatos entre as “quatro partes do mundo” (África, América, Ásia e Europa; a Oceania chegaria depois); ao falar das reformas religiosas do século XVI, portanto, estamos falando de fenômenos que tiveram ressonâncias globais. Se alguém duvida, o pequeno relato a seguir pode ser útil.

A mais antiga tradução da Bíblia para o idioma português foi elaborada em Djakarta, na ilha de Java (Indonésia), na segunda metade do século XVII. Seu autor era um clérigo da Igreja Reformada Holandesa, o português João Ferreira de Almeida (1628-1691). Àquela altura, Djakarta chamava-se Batávia, por se encontrar bem no centro dos interesses da expansão comercial neerlandesa nas terras asiáticas. Católico de nascimento, Almeida provavelmente se dirigiu à Ásia com intenção de se consagrar à obra missionária; já por várias décadas os portugueses se serviam de seus tratos comerciais na região para patrocinar o avanço das missões jesuíticas. No entanto, após ler um tratado que fazia críticas à Igreja Católica e cujo título era Differença d’a Christandade, Almeida converteu-se à fé reformada. Após concluir seus estudos teológicos, foi ordenado como pastor reformado em 1656 pelo presbitério de Málaca.

Um português em Java, ministro de uma igreja protestante de origem neerlandesa, traduzindo a Bíblia para um idioma, o português, que se tornara pelas artes do comércio a língua franca do sudoeste asiático. Não poderíamos ter uma ilustração mais clara do que foi essa impressionante “mundialização” ocorrida na Época Moderna e para a qual o comércio teve importância crucial. Mas o que encontramos no centro desse episódio cuja vinculação com uma lógica global é tão evidente? Encontramos a Bíblia, documento fundamental de toda a Cristandade, e uma expressão da fé cristã elaborada na Europa, no cadinho das impressionantes tensões que caracterizaram as reformas religiosas do século XVI. Nosso tema é, portanto, um tema global, cujas ressonâncias alcançam os nossos dias e certamente as nossas vidas.


Rui Luis Rodrigues é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. É professor de História Moderna no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde dirige o Modernitas – Núcleo de Estudos em História Moderna. É especialista no Humanismo renascentista e nas relações entre religião e política nos primeiros séculos da Época Moderna.

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