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Reflexões de um medievalista herético | Lançamento

Sobre História, valores e estupidez surpreendente

Como o leitor compreenderá rapidamente, este livro expressa espanto diante da loucura coletiva que vejo neste preocupante alvorecer do novo milênio. Por conseguinte, julgamentos de valor, incluindo julgamentos sobre a estupidez de determinadas declarações, permeiam a visão do livro sobre uma configuração desastrosa, definidora de uma época, que se cristalizou na esfera pública ocidental há duas décadas, na virada do milênio. Esta obra é muito mais crítica do que um livro de História profissional normal, embora eu afirme que sou um historiador e escrevo uma história confiável e precisa (do presente).

Reflexões de um medievalista herético

Portanto, para deixar claro em que base faço tais julgamentos, apresento alguns dos valores que fundamentam esta obra. Se você discordar desses valores, talvez o livro não tenha muito a oferecer (exceto a reafirmação de que o seu lado antidemocrático está vencendo); mas se você concordar com eles, então, a estupidez é importante, até porque ela é um indicador negativo de longevidade.

Deixe-me formular a questão dos valores em termos de um conjunto de escolhas entre dois polos de comportamento. No geral, a questão diz respeito a uma escolha entre relações hostis de soma zero e relações generosas de soma positiva. Ao longo do livro, faço referências aos valores delineados na segunda coluna como “demóticos”, da palavra grega para pessoas (demos), porque penso que são valores que empoderam todas as pessoas, incluindo os homens do povo, para desmantelar imediatamente o “divisor primário” que privilegia aristocratas movidos pela honra em detrimento de homens do povo estigmatizados e criam culturas de dignidade, de igualitarismo e de liberdade, nas quais todo o povo (homens do povo e elites) partilham os mesmos direitos e oportunidades. Os valores demóticos tornam possível a liberdade mútua. Eles não resolvem todos os problemas; a vida é complicada e às vezes amarga. Mas eles, sem dúvida, a tornam muito mais doce para todos, mesmo para aqueles cujas asas dominadoras são cortadas pelas suas exigências.

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Os julgamentos de valor neste livro são dirigidos àqueles que compartilham uma preferência baseada em princípios pelas escolhas demóticas descritas na coluna da direita e, contudo, lidam (conscientemente ou não) de forma regular com pessoas que, em nome desses princípios, minam amiúde tais valores. Este livro tenta identificar estes ataques demopatas que, mesmo ao invocar generosidade e empatia, na verdade prejudicam as sociedades (historicamente raras) que favorecem escolhas demóticas. Creio que a dedicação a esses princípios, não obstante a poderosa atração gravitacional (natural/programada/límbica) da coluna da esquerda tenha criado sociedades modernas (relativamente) livres e (notavelmente) produtivas. Então deixe-me esclarecer novamente desde o início: este livro é dirigido a liberais e progressistas genuínos, pessoas que prezam pelos valores demóticos.

As sociedades demóticas (em grande parte ocidentais, até agora) dificilmente estão isentas de falhas e, dado o imenso empoderamento tecnológico que tais princípios proporcionaram, algumas dessas falhas são potencialmente catastróficas (armas de destruição em massa, aquecimento global). No entanto, sejam quais forem tais deficiências, as culturas demóticas oferecem grandes melhorias no que diz respeito à liberdade para os homens do povo, liberdade de expressão, liberdade da fome e da dor e liberdade para corrigir os (inevitáveis) abusos da sociedade, dos seus governantes e das autoridades públicas. Nenhuma sociedade anterior à do divisor primário jamais proporcionou a um número tão grande de seus membros tantas vantagens maravilhosas.

O economista Carlo Cipolla definiu estupidez como “causar danos a outros sem, ao mesmo tempo, obter qualquer vantagem para si”. Em termos da teoria dos jogos, a pessoa estúpida de Cipolla faz um jogo de soma zero, gratuitamente autodestrutivo, no qual, mesmo sem vencer, prejudica outros que poderiam ser favorecidos. Neste livro, defino surpreendentemente estúpidos como “aqueles que criam vantagens para quem quer prejudicá-los”, aqueles que, em nome de princípios de soma positiva, são ludibriados pelas estratégias duras e de soma zero de seus inimigos autodeclarados e demopatas. E fazem isso repetidamente, sem nenhuma ideia aparente para onde conduz a estrada pavimentada com suas “boas” intenções. Me engane uma vez, que vergonha; me engane dezenas de vezes…?

Probabilidades esmagadoras contrárias ao que aconteceu

Meu professor de História Medieval em Princeton, Patrick Geary, iniciava sua palestra sobre a Europa no século XI com o seguinte paradoxo: se olharmos o mundo no ano 1000, as civilizações mais bem-sucedidas, o “primeiro mundo” da época, era composto pela China governada pela dinastia Song e pela Arábia abássida. O Ocidente europeu estaria na parte mais baixa do terceiro mundo – vulnerável a ondas de invasões por todos os lados, exportadores de bens primários, inclusive de seres humanos. E se buscássemos no Ocidente pequenas histórias de sucesso, encontraríamos os alemães otonianos, então liderados por seu terceiro Otto, mirabile mundi, renovador de Roma. No fundo da pilha de perspectivas ocidentais, provavelmente colocaríamos o futuro hexágono da França, em que um rei excomungado, líder de uma nova e falida dinastia, “governava” uma zona rural cada vez mais dividida por senhores de guerra protegidos em seus castelos, que saqueavam o campesinato à vontade.

E, no entanto, quando olhamos para trás, a partir do final desse mesmo século, a França é uma potência da Europa e a Europa, a nova potência do globo. Naquele século XI, a França tornou-se a fonte de uma nova cultura excepcionalmente vigorosa e expansiva: peregrinação; arquitetura de igrejas; comunas urbanas e rurais; mercados e feiras; ensino universitário; pensamento jurídico; movimentos de reforma religiosa; “heresias” e novas ordens eclesiásticas; literatura leiga; cavalheirismo; poesia trovadoresca; cavaleiros das Cruzadas. Os árabes que encontraram os cruzados no final da década de 1090, na sua fase de obras-de-Deus-por-nosso-intermédio, referiam-se a todos os europeus ocidentais como “francos”. De fato, essa nova Europa deixara subitamente de ser vítima de invasão, transformando-se em conquistadora agressiva, preparada com sua nova tecnologia em constante desenvolvimento para encontros com o restante do mundo, que resultariam no domínio global ao longo do milênio.

Se essa palestra tivesse ocorrido logo após o Superbowl de 2017, quando o New England Patriots venceu de virada contra probabilidades de 99,8%, meu professor poderia ter usado isso para ilustrar o problema: olhando a Europa no ano 1000, ter-se-ia dado a ela probabilidades muito baixas de se transformar na principal força do planeta nos séculos seguintes, e certamente teríamos considerado que a França dos anos 1000 era a menos provável de tornar-se líder da Europa nessa transformação (a menos que você estivesse de olho no movimento Paz de Deus*).

Façamos um experimento mental nos anos 2000. Volte duas décadas, digamos, para janeiro de 2000, e veja o novo século: quais seriam os vencedores e os perdedores no próximo século, no próximo milênio? Passado o susto do ano 2000 (Y2K) ou bug do milênio, o novo milênio caminhava a todo vapor para a sociedade civil global e a internet, que criou tantas novas possibilidades deslumbrantes. Os grandes vencedores do novo e global milênio? As sociedades ocidentais que produziram esses agentes e tecnologias da globalização: aqueles que poderiam inovar, navegar nas correntes abertas do ciberespaço, o mundo sem fronteiras, o mundo da cooperação e da hibridização. Não culturas tribais empenhadas na guerra. Certamente, é assim que os promotores da União Europeia se sentiram no lançamento do euro (1999-2002).

Poderíamos discutir pontos mais delicados – Europa versus EUA, China, Índia, versus Ocidente, talvez mesmo até um pacífico Novo Oriente Médio a partir do Líbano e da Síria, através de Israel, Palestina e Jordânia até o Egito e mais para além (!). Entretanto, na parte inferior da lista de possibilidades de sucesso no novo século estava um minúsculo movimento muçulmano milenarista, baseado em grande parte nas cavernas do Afeganistão, que queria espalhar Dar al Islam para o mundo inteiro nesta geração, os caliphators.

Quais seriam as probabilidades, em janeiro de 2000, de que os caliphators conquistariam pelo menos uma democracia ocidental no século XXI, por mais breve que fosse essa conquista? Menos de 0,2%? Qualquer um que os levasse mais a sério, seja Samuel Huntington, Daniel Pipes ou Steven Emerson, era julgado como um beligerante que procurava criar o conflito sobre o qual alertavam. Se a maioria das pessoas, ainda na década de 2020, pensa que o sucesso do caliphator é uma total impossibilidade, imagine quão incrédulas estavam as pessoas antes do 11 de Setembro e dos ataques que o sucederam. É claro que aqui o perigo reside no fato de que precisamente o que o observador descarta como impossível atua como uma convocação para quem faz coisas impossíveis. “Ao declarar guerra aos Estados Unidos a partir de uma caverna no Afeganistão, Bin Laden assumiu uma postura primitiva, incorrupta e indomável, contra o incrível poder do secular, científico e tecnológico Golias; ele estava lutando contra a própria modernidade”.

E nesse erro, arrisca-se uma batalha contundente com uma das mais dolorosas leis da dinâmica apocalíptica: “Errado não significa inconsequente”…, especialmente no caso de movimentos cataclísmicos ativos.7 Hitler estava errado sobre seu Tausendjähriger Reich (O Reich de Mil Anos) em 988 anos, mas isso é um pequeno consolo para as dezenas de milhões de pessoas que ele assassinou enquanto tentou durante os primeiros 12.

E, no entanto, como este livro procura elucidar, no final do ano 2000 e ao longo dos três anos seguintes, os ventos mudaram repentinamente. David Brooks, escrevendo em 2017, olhou para trás com perplexidade frente ao repentino colapso:

Há décadas, muitas pessoas, especialmente nas universidades, perderam a fé na narrativa da civilização ocidental. Pararam de ensiná-la e a grande transmissão cultural se rompeu. Agora, muitos estudantes, se é que a encontram, aprendem que a civilização ocidental é uma história de opressão. É como se um vento prevalecente, que movia todos os navios no mar, de repente parasse de soprar.

Na verdade, não. Foi o vento predominante que impulsionava os navios ocidentais e modernos que parou de soprar. Mas os ventos nas velas dos caliphators ficaram mais fortes. Em 2000, a jihad global tornou-se a força dominante… foi algo tão difícil para os ocidentais considerarem que, quando Bin Laden a reivindicou depois do 11 de Setembro, pensaram que não passasse de encenação. Acontece que nós, infiéis, fingíamos que era um absurdo.

De certa forma, este livro não deveria ter sido escrito, e eu deveria ser capaz de trabalhar sobre as origens da civilização ocidental moderna no milenarismo demótico da França do século XI, para minha plena satisfação. Se tivéssemos feito um bom trabalho de ensinar a cada geração sobre o que a modernidade havia conquistado, se tivéssemos ficado atentos às atitudes e práticas medievais a que tínhamos, consciente, voluntariamente e com grande dificuldade, renunciado – como as difundidas noções de que as mulheres e os trabalhadores braçais deveriam pertencer a homens de honra, serem vendidos e entregues juntamente com a propriedade, ou que as autoridades religiosas tinham o direito de torturar e executar pessoas que considerassem ter interpretado mal as “suas” sagradas escrituras, ou que os governantes deveriam ir à guerra anualmente para “saquear e distribuir”, ou que por uma questão de honra era preciso derramar sangue –, então o ressurgimento dessas características não representaria tal problema de reconhecimento. Mas algo aconteceu e parecemos sonâmbulos passando por avatares de monstros medievais sem sequer percebê-los; nós os descartamos como fruto da nossa imaginação, como monstros no armário. Ou, pior ainda, há quem imagine que são ursinhos de pelúcia que podemos abraçar e que as pessoas que nos alertam contra eles são apenas xenófobos racistas.

No entanto, argumentarei neste livro que o paradoxo que enfrentamos é o seguinte: na verdade, é absurdo que os caliphators acreditem que possam dominar o Ocidente; o abismo entre capacidade e desejo é tão grande que justificadamente provoca escárnio infiel ocidental. Porém, esse não é o sentimento deles: na intensidade de seu desejo ardente, eles ignoram as próprias “realidades” que tanto nos tranquilizam. Em assuntos apocalípticos, empreender uma guerra extremamente assimétrica contra forças muito mais poderosas garante aos crentes que eles lutam do lado certo, justo e do lado de Deus. E eles lutam incansavelmente, com todas as suas forças. Quanto mais ignorarmos o fenômeno e interpretarmos equivocadamente as demandas dos caliphators como um absurdo ou como reivindicações exageradas, mas legítimas, dos tipos de direitos que criamos para nossos cidadãos, menos seremos levados a sério por eles… É nesse sentido que possibilitamos o sonho impossível deles.

A história da interpretação errônea dos fenômenos apocalípticos constitui uma questão central no instável e difícil campo dos estudos milenaristas. Uma enorme lacuna no que tange à mentalidade divide entre os “galos” apocalípticos cacarejando que o dia do Senhor amanheceu e seus cronistas e analistas, “corujas” antiapocalípticas. As crenças parecem retrospectivamente tão ridículas que os estudiosos têm dificuldade em levar a sério tais ideias: “contrassenso é contrassenso, mas a história do contrassenso é erudição”, observou com sarcasmo um historiador ao apresentar um estudioso dos movimentos messiânicos.

A lacuna mental é duplicada por um fato histórico: cada movimento apocalíptico passado previsto pelos “galos” falhou (o Fim/Milênio ainda não chegou). Isso tende a distorcer o registro documental e moldar atitudes retrospectivas: no período de decepção apocalíptica, em que os “galos” se mostram errados e as “corujas” provam estar certas, uma extensa recontagem de eventos ocorre sobre o período anterior ao fracasso, depois que as pessoas souberam quem estava errado e quem estava certo (ex post defectu). A dinâmica social que prevaleceu quando os “galos” apocalípticos dominaram a cena e a tempestade abafou os avisos das “corujas” céticas perdeu-se nesse processo. Como resultado, obtém-se uma configuração documental semelhante a um iceberg, no qual o pequeno topo empurra acima da superfície a linha d’água escrita (documental), enquanto todo um mundo de discurso fervilha sob a superfície, um mundo oral, principalmente invisível ao observador não treinado em fenômenos apocalípticos.

Uma coisa é os historiadores medievais interpretarem dramaticamente mal o impacto apocalíptico do ano 1000 na cultura europeia (ou, nesse caso, o impacto do Annus Mundi* 6000 na coroação de Carlos Magno). Os medievalistas podem navegar em seus navios de reconstrução historiográfica em direção aos icebergs ocultos do discurso apocalíptico, sem perceber quando os atingem ou quando seu navio afundou, por confiarem que quaisquer vestígios de apocalipticismo no registro textual constituem meros destroços e detritos sem importância. Conquanto nenhum contemporâneo os desminta e que seus colegas historiadores concordem, um forte consenso acadêmico pode aceitar um registro escrito tendencioso pelo seu valor nominal. Ninguém pode provar que essa embarcação narrativa afundou ao atingir um iceberg invisível, que essa imagem do passado perdeu uma parte fundamental da história. Não será o fim do mundo se entendermos errado as origens da nossa civilização notavelmente produtiva.

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Por outro lado, se cometermos os mesmos erros na avaliação do islã apocalíptico no alvorecer do primeiro milênio global (terceiro milênio e.c.), corremos sérios riscos. Quando nossos esquemas exegéticos atingem um iceberg existente de discurso apocalíptico violento, cuja magnitude subestimamos dramaticamente, todas as civilizações podem afundar. Não seria preferível servir à nossa geração do que participar de um ato particularmente perigoso de negação coletiva, uma óbvia produção na Broadway de As Roupas Novas do Imperador, mas dessa vez seguindo um ícone de ódio em vez de um imperador vaidoso e tolo? Hans Christian Andersen não nos diz no final se as pessoas riram ou choraram quando reconheceram abertamente que o imperador estava nu. Nesse caso, além daqueles que silenciosamente mudaram de lado, não há dúvida de qual será a nossa resposta quando conhecermos e compreendermos a verdade. Não seria uma ironia trágica se futuros historiadores escrevessem a história do Ocidente em termos de dois movimentos milenaristas que passaram despercebidos, um que tem suas origens no ano 1000 e outro no seu desaparecimento, na sequência do ano 2000? Especialmente irônico, quando se considera que algumas das lições demóticas da virada dos anos 1000 podem ter ajudado a lidar com as crises dos anos 2000.


Richard Landes é professor emérito de História na Universidade de Boston. Seu trabalho inicial, como medievalista, se concentrou no período em torno de 1000 e.c., com foco em movimentos apocalípticos, e se especializou também no papel da religião na formação e transformação das relações entre elites e plebeus em várias culturas. Autor de diversos livros, vive em Jerusalém e, hoje, pesquisa também sobre crenças apocalípticas do segundo milênio, assunto desta obra.

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