Recentemente, a antropóloga Mirian Goldenberg compartilhou na sua coluna semanal no jornal Folha de S.Paulo as reações a um vídeo que ela postou nas redes em que falava sobre um golpe que havia tomado. Ao invés de ter empatia e sensibilidade da audiência com a situação, os comentários tinham como foco um traço linguístico da sua fala na palavra advogado. Ela relata:
AdEvogado?”; “Não é ‘adevogado’ que fala”; “Se for procurada por um ‘adevogado’ já sei que é fake”; “A desinformada que fala ‘adêvogado’ aprendeu o que é golpe de verdade kkkk”; “O adevogado é falso mesmo? Kkk”; “’Adevogado’? Pode isso? Uma ‘intelequitual’ brasileira da linha de frente falando assim?”; “Um currículo e tanto e falando ‘adevogado?”; “Falso adEvogado. Esquerdista na certa kkk”; “Chamou de adEvogado. Então não foi difícil entender por que caiu em golpe… Eu teria é vergonha de falar adEvogado”; “Como pode dizer ‘adevogado’??? Falta de vergonha”; “A palavra ‘advogado’ se pronuncia ‘advogado’, com o ‘d’ mudo. A pronúncia ‘adevogado’ é um erro de ortoépia”; “É advogado com ‘d’ mudo, estúpida!”.
Como podemos ver pelos comentários, todo o seu trabalho e a sua carreira da pesquisadora renomada foram apagados pelo processo de epêntese vocálica (a inserção de uma vogal entre duas consoantes, metaplasmo muito comum no português brasileiro por conta do padrão silábico vogal-consoante) que gerou a realização adevogado. Mirian ficou, com razão, triste. Foi chamada explicitamente de desinformada e de estúpida. Tudo por causa de um único traço do sistema da língua.

Curiosamente, a mesma Mirian Goldenberg que foi julgada também julgou, como ela mesmo compartilhou em uma outra coluna, no mesmo jornal, em que questionava o uso do pronome a gente:
Recentemente tentei ver uma palestra no YouTube e desisti logo no início. Sem exagero: foram sete “a gente”; em trinta segundos. […] Busquei outra palestra e abandonei em seguida […] Ligo a TV e é irritante perceber que os jornalistas, comentaristas e especialistas não conseguem falar uma só frase sem “a gente”.
Mirian Goldenberg não notava, até ter contato com as reações ao seu vídeo, que fazia epêntese em advogado, mas percebia e achava irritante quem usa a gente. Por que prestamos atenção em algumas palavras, mas não em outras, para julgar as pessoas? Esse é o ponto de partida do livro Variação linguística: diversidade e cotidiano, recentemente lançado pela Contexto, em que explico as questões sobre o modo como nos relacionamos com a variação linguística no dia a dia.
A maneira como lidamos com a diversidade linguística no nosso cotidiano importa. Em algum momento, você já deve ter percebido alguma diferença no modo como outra pessoa falou. A percepção dessa diferença na fala é tão forte que está até na Bíblia, com os efraimitas sendo assassinados por não falarem direito uma palavra (xibolete), e Pedro sendo reconhecido pelo jeito que fala. Precisamos aceitar que julgamos as pessoas pelo jeito que elas falam, e isso é natural. No caso de Mirian Goldenberg, as pessoas que comentaram o vídeo julgaram o traço negativamente; já o seu marido, como ela mesmo relata, achava “bonitinho”. Assim como para algumas pessoas a gente é a única forma de referência à primeira pessoa do plural, para outras, há muito “uso e abuso” de a gente.
Explicar por que isso acontece tem sido objeto de estudos da sociolinguística, psicolinguística e psicologia da linguagem, junto com as ciências cognitivas, que tomam como foco o processamento da variação linguística para tentar desvelar o custo cognitivo do processamento de um dado traço linguístico variável em uma língua, considerando os padrões de recorrência da produção e os padrões de julgamento da percepção. Estes estudos tentam identificar quem fala e em que contexto (produção), e o que as pessoas pensam sobre esses diferentes jeitos de falar (percepção). Mas nem sempre o que ouvimos é o que de fato ouvimos. Existem vários processos cognitivos que acontecem entre o nosso ouvir e o nosso perceber a língua. As dinâmicas do processamento linguístico são complexas e ao mesmo tempo instigantes. E acontecem a todo o momento!
E você? Já se perguntou o que você julga na fala de outras pessoas e o que as outras pessoas julgam na sua fala? O conhecimento sobre variação linguística contribui para uma sociedade mais equitativa e diversa linguisticamente, e o livro Variação linguística: diversidade e cotidiano pretende guiar quem tem interesse nessas questões.
Raquel Freitag é linguista e professora do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal de Sergipe (UFSE), com doutorado em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e estuda o processamento da variação linguística. Pela Contexto é coautora dos livros História do Português Brasileiro Vol. IV e Psicolinguística: diversidades, interfaces e aplicações, além de autora de Não existe linguagem neutra! Gênero na sociedade e na gramática do português brasileiro e Variação linguística: diversidade e cotidiano.