O cabelo bem penteado da minha irmã, cuidadosamente dividido em duas tranças feitas com capricho pela minha mãe provocava meus piores instintos. Assim que podia corria atrás e puxava, sem dó, aquele trançado e curtia os gritos da menina, dois anos mais velha que eu, mas já bem menor. Mas, falando sério, e de uma ótica de adultos, sei que não era ela que me provocava, mas eu a ela. Ou não?
A garota caminha despreocupada no campus universitário. Um homem surge por detrás dos arbustos com uma faca na mão (pode ser um revólver, ou apenas as mãos brutais) e ameaça matá-la se não for com ele até um canto escuro nas proximidades. Indiferente aos soluços da menina ele levanta a saia dela, arranca sua calcinha com violência e a estupra. Mais tarde, acompanhada do pai, a garota vai dar queixa em uma delegacia. O escrivão pergunta o que ela vestia. Queria saber como o homem tinha sido provocado para agir da forma como agiu.
Um bando de assassinos fundamentalistas irrompe na sala de reunião do jornal satírico Charlie Hebdo, em Paris, e mata quase todos os membros da redação. Laurent Sourisseau sobrevive, torna-se diretor de redação e comanda o reerguimento do semanário. Vem ao Brasil, é convidado a ficar no meio da Roda Viva, da TV Cultura. Alguém pergunta ao sobrevivente do massacre se o jornal não tinha feito alguma provocação para merecer tal reação por parte dos fanáticos que agiram alegando desrespeito à sua religião.
Nos dois casos, incrivelmente, há quem defenda a esdrúxula tese de que a culpa é da vítima. Ora, ninguém é obrigado a comprar um jornal, ele vai para as bancas, lê quem se dispõe a pagar por ele. Se houver abuso existe uma lei acessível a todos os cidadãos, uma vez que a França é um país democrático onde impera, desde 1905, a separação entre religião e Estado. Da mesma forma, as mulheres têm, felizmente, no Brasil, o direito de se vestir da maneira que julgarem mais adequada. Como na França, nosso Estado é laico. Há uma separação constitucional entre Estado e religião. Cada cidadão segue a crença que quiser, não segue nenhuma, ou (e viva o Brasil) segue pedaços de cada uma. Os sincretismos, por aqui, são muito comuns. Nenhuma mulher precisa usar véus ou burcas (que, de resto, não são obrigatórias sequer para todas as muçulmanas), veste o que acha mais bonito, mais adequado, mais arejado, mais econômico, veste o que achar mais prático, veste, enfim, o que quiser. Justificar violência sexual pela vestimenta da mulher (alegando provocação) é um absurdo tão grande quanto achar que fundamentalistas malucos têm o direito de matar cartunistas.
Provocação? Vou dizer o que é, realmente, provocação. Provocação era queimar mulheres sábias, alegando serem bruxas, quando na verdade desfiavam o monopólio do saber da Igreja ao ministrar ervas medicinais a doentes na Idade Média. Eram elas as provocadoras? Provocação era perseguir e matar cristãos novos em Portugal utilizando o instrumento da Inquisição para impedir o crescimento de uma classe mercantil forte. Eram eles que provocavam? Provocação era espancar e até matar escravos de origem africana no Brasil, ou seriam provocadores os escravos quando praticavam a resistência ativa ou passiva? Ou teriam sido os palio-cristãos que provocavam os romanos com sua fé monoteísta? Não, os provocadores eram os romanos pagãos que atiravam os adoradores de Jesus aos leões. Ou, quem sabe ainda, eram os judeus (comunistas e capitalistas ao mesmo tempo, na retórica hitlerista) que provocavam os nazistas e não estes, ao planejar e executar o maior genocídio que a História já registrou?
Vamos parar de buscar justificativas para os assassinos, os genocidas, os estupradores. Afinal, eles assassinaram, praticaram genocídio, estupraram. Nada pode justificá-los. Podemos, isto sim, buscar entendê-los, para tentar impedir outras ações do mesmo gênero. E puni-los. O nosso lado deve ser o do agredido, do violentado, daquele que teve seus direitos usurpados. Afinal, por isso e para isso somos civilizados. Temos que consolar o agredido, tentar fazer com que ele supere as sequelas da violência de que foi vítima.
Já para os não civilizados, não nos cabe justificá-los, apenas esperar que evoluam.
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Por Jaime Pinsky, historiador, professor titular da Unicamp, diretor da Editora Contexto, autor de Por que gostamos de história, entre outros livros.