No dia em que assumiu a Secretaria de Educação de um dos maiores municípios do Brasil, o Secretário escreveu na página da sua rede social:
“Proponho, desde já, um pacto entre nós: todas as crianças entregues aos nossos cuidados desenvolverão, na idade adequada e com proficiência, o domínio pleno da leitura, da escrita e do manejo dos números, que é a base do que vem depois. Isso deve ser um ponto de honra, uma meta clara que orientará nossos melhores esforços.”
Um alienígena, ao ler a proposta do Secretário, pensaria “por que falar em pacto para algo aparentemente tão simples como alfabetizar?” O venusiano também estranharia o fato de que não nos causa estranheza essa linguagem solene de pacto social. Nossa falta de espanto não se baseia apenas no fato de que até pouco tempo atrás um a cada cinco alunos no terceiro ano do ensino fundamental não dominava de forma adequada a leitura, a escrita e os números. Afinal, a palavra “pacto” surgiu relacionada ao Plano Nacional da Educação (“Meta 5: alfabetizar todas as crianças, no máximo, até o final do 3º (terceiro) ano do ensino fundamental.”), em um “Pacto nacional pela alfabetização na idade certa”.
Aqui nos unimos ao alienígena para perguntar: por que ensinar a ler, escrever e contar é uma tarefa tão difícil? Por que é tão difícil o cumprimento do Artigo 30 da Resolução CNE/CEB, de 14 de Dezembro de 2010: “Os três anos iniciais do Ensino Fundamental devem assegurar a alfabetização e o letramento (…).” Parece evidente que não temos aqui apenas um problema de planejamento curricular e parece mais evidente ainda que problemas complexos não admitem explicações simples.
A proposta de pacto do Secretário disparou em mim algumas lembranças. O alinhavamento que ele fez das palavras “leitura, escrita e manejo dos números” me fez recordar a forma como Althusser falou sobre a escola nos anos 1970: “Ora, o que se aprende na Escola? Vai-se mais ou menos longe nos estudos, mas de qualquer maneira, aprende-se a ler, a escrever, a contar (…).” O livrinho de Althusser que contém essa passagem, o Aparelhos Ideológicos de Estado, teve dezenas de edições Brasil e foi parte importante do ideário da educação brasileira a partir dos anos 1970, como lembra Paulo Freire na Pedagogia da Esperança. Althusser ia mais adiante. Segundo ele, o aparelho escolar ensinava não apenas a ler, escrever e contar, mas também as regras dos bons costumes, as regras da moral e da consciência cívica e profissional (as expressões são dele). Aparte o fato de que a escola contribuía para a dominação de classe, não era pouco o trabalho dela.
Vale a pena lembrar alguns marcos na história próxima a essa dos Aparelhos.
Um pouco antes do livro de Althusser, surgiu um estudo que fez muito sucesso. Em 1968, Philip W. Jackson publicou Life in classroom, o livro que popularizou o conceito de “currículo oculto” e que se tornou um marco nas conversas sobre o cotidiano de uma escola e do currículo. Curiosamente, o livro nunca foi traduzido para o português e, mais curiosamente ainda, o conceito de “currículo oculto” foi enviesado entre nós de modo a enfatizar uma dimensão de classe que não possui no contexto original.
Em 1968, Paulo Freire terminou de escrever a Pedagogia do Oprimido, um livro que começou a circular no Brasil apenas nos anos 1970 e que passou ao largo de temas de escolarização formal e dos seus problemas. Ali Freire menciona temas ligados à escola formal apenas uma meia dúzia de vezes e em todas elas a escola é objeto de críticas.
Em 1970, começou a circular o já citado livro de Althusser, Aparelhos Ideológicos de Estado. O livro foi constantemente republicado até poucos anos atrás e era referencia obrigatória na área da educação. O livro de Pierre Bourdieu & Jean-Claude Passeron, A Reprodução: Elementos para uma teoria do sistema de ensino, é desse mesmo ano e rapidamente teve a mesma sorte de recepção que o livro de Althusser. Começava o reprodutivismo.
Em 1971, saiu o livro que é o marco para o surgimento da Nova Sociologia da Educação, Conhecimento e Controle: Novas direções para a Sociologia da Educação, editado por Michael F. D. Young com capítulos escritos por Basil Bernstein, Pierre Bourdieu, entre outros. No mesmo ano temos a publicação do livro de Ivan Illich.
É nesse contexto que surgem os primeiros movimentos de protesto contra as teorias curriculares tradicionais e o predomínio de estudos quantitativos e operacionais na educação. Surgia um movimento de consciência da educação como ato político, cujo símbolo era a pergunta “Quem educa o educador?”. Trata-se de uma expressão retirada da terceira tese de Marx sobre Feuerbach, citada na Pedagogia do Oprimido. É possível que Paulo Freire tenha sido introduzido no tema por Álvaro Vieira Pinto, que a usou em um texto de 1966 (no capítulo sete de Sete lições sobre educação de adultos, escrito no Chile).
Nesse processo de tomada de consciência da natureza política da educação, aparentemente o aparelho escolar enferrujou e a descrição althusseriana envelheceu: o aparelho não mais ensina a ler, escrever e contar. O que aconteceu, nos anos 1970, junto a esse clima althusseriano, que contribuiu para o atual estado de coisas? Como eu já disse, problemas complexos não admitem respostas simplistas. Alinhavo aqui algumas direções que explorei em Quando ninguém educa:
a) seguindo a tendência dos países de fala inglesa, e aproveitando o clima de abertura política do final dos anos setenta, demos às costas para o “tecnicismo” em educação e para com todo o vocabulário de “objetivos comportamentais, taxionomias de aprendizagem e mesmo, em certa medida, para o prestígio da psicologia da educação;
b) da mesma forma, seguindo uma tendência europeia, começamos a praticar a “nova Sociologia da Educação” (Bourdieu, Passeron, Bernstein, Althusser etc.), e algumas variantes antropológicas e políticas, como Gramsci.
c) o clima resultante desses movimentos deprimiu os estudos de didática e a teoria curricular menos permeável à onda crítico-reprodutivista; a isso se somou o desprestígio dos estudos quantitativos no campo educacional. O fenômeno chegou mesmo a alcançar a autodesignação do campo: os “centros de ciências pedagógicas” transformaram-se em “centros de educação”;
d) a combinação dessas tendências com algumas consequências de ações dos órgãos de classe – o surgimento do “trabalhador na educação” para substituir o professor e o excesso de greves são dois exemplos que indico no livro –, diminuiu o que chamei de “mística da escola”. Não por acaso, Paulo Freire, na Pedagogia da Autonomia, criticou a “eficácia das greves”; deveríamos, escreveu ele, “reinventar a forma histórica de lutar”;
e) a progressiva “sociologização da pedagogia”, que começa com o bom argumento que uma teoria social do conhecimento deve fazer parte das teorias educacionais, evolui para uma redução do conhecimento a perspectivas e interesses de classe, ao ponto de vista dos sujeitos que conhecem, em nome de possibilidades emancipadoras; fica à vista, no horizonte, a perda da especificidade da educação;
f) o pedagógico, pensado como político, passa a ser uma categoria subordinada; solidifica-se um ideário educacional no qual as transformações relevantes no plano educacional são vistas como dependentes de alterações nas formas de propriedade dos meios de produção e nas relações sociais;
g) consagra-se o “populismo pedagógico”. A expressão “populismo pedagógico” começou a ser usada nos anos 1990 pelo sociólogo Basil Bernstein para indicar um fenômeno observado na Inglaterra. Ela designa a estratégia pedagógica de inserir nos conteúdos das disciplinas escolares alguns segmentos de conhecimentos comuns, do repertório do estudante, com o objetivo de tornar o conhecimento escolar mais acessível. Isso implica uma valorização e acolhimento do cotidiano de referencia do educando. O populismo pedagógico era uma estratégia que permitia ao educador dar voz aos setores da população que estavam desprovidos dela, para assim combater-se o elitismo e o alegado autoritarismo do conhecimento escolar. O populismo pedagógico foi uma estratégia de recontextualização dos conteúdos escolares e esteve presente na maior parte dos países que enfrentaram o desafio de expandir rapidamente a rede escolar, incorporando nela segmentos da população até então à margem do sistema. Vale lembrar aqui que o fim do exame de admissão ao ginásio, no Brasil, ocorreu apenas em 1971. Assim, foi a partir dos anos 1970 que acentuou-se o desafio de uma pedagogia e didáticas capazes de ensinar eficazmente gerações que vinham de lares com pouco letramento;
h) o desafio da reinvenção didática – e o mesmo vale para os estudos de teoria curricular, psicologia da aprendizagem etc. –, a partir dos anos 1970, passou a ser considerado uma ocupação menos urgente do que o da crítica reprodutivista e disciplinar, do assim chamado empoderamento e do discurso das vozes. O que aconteceu pode ser resumido em uma frase bem humorada de Basil Berstein: o progressivo predomínio do etno em detrimento da grafia;
i) o ponto acima – o rebaixamento dos estudos de didática – foi resumido, no final dos anos 1980, pelo professor Nélio Parra com a metáfora da Gata Borralheira. Discutindo o que ele chamou de “o questionável papel das faculdades de educação”, ele escreveu: “como ensinar crianças, jovens e adultos, passa a ser encarado como atividade ancilar de segunda categoria, relegada, quando muito, aos horários menos nobres dos Congressos e Seminários de Professores. E a Cinderela politizada, que tem o seu momento de brilho nesses encontros, vive todo um drama quando, após as doze badaladas, vestindo novamente o seu traje de Gata Borralheira, se vê perdida sem saber como resolver o problema de alfabetizar as cinquenta crianças subnutridas e desmotivadas de sua classe”. (Parra, 1986, p. 129).
A crise segue. Sobram indícios objetivos de nosso zelo para com os estudos de fundamentos da educação e nosso descuido com a formação profissional específica. Em 2009, um estudo publicado pela Fundação Carlos Chagas deu conta de que apenas 28% das disciplinas dos cursos de Pedagogia se referem à formação profissional específica – 20,5% a metodologias e práticas de ensino e 7,5% a conteúdos. (Gatti e Nunes, 2009).
Existem muitos outros aspectos a ser considerados aqui, e que explorei no livro. Deixo então de seguir nessa linha para me concentrar em um ponto central e convergente. Vou dizer isso da forma mais direta e clara possível: contrariamente ao que foi dito e repetido durante muito tempo, a escola simplesmente não é, em primeiro lugar, um espaço de disputa política e ideológica; a escola não é, em primeiro lugar, um espaço de lutas sociais.
É preciso falar sobre o que a escola é em segundo ou terceiro lugar? Por certo. Que a escola seja, em certas condições e sob certo ponto de vista, um lugar de disputas políticas e sociais, quem há de negar? Mas é preciso ficar claro que há uma lamentável confusão (e um gigantesco abismo) entre falar sobre a escola em terceira pessoa e colocar-se na perspectiva da primeira pessoa.
Em terceira pessoa, falamos da escola tentando descrevê-la como um objeto: institucional, social, psicológico, antropológico, político, legal etc. Para isso precisamos de distância e alguma perspectiva teórica. Houve um tempo em que se pensou, nas humanidades, que o continente da história e da sociedade havia finalmente sido descoberto; que, finalmente, uma ciência da história e da sociedade estava ao alcance, que havia um “pensar certo” sobre todas essas coisas, como Paulo Freire deixa claro no derradeiro capítulo da Pedagogia do Oprimido, quando subscreve Que Fazer: sem teoria revolucionária não pode haver movimento revolucionário. O ditado de Lênin não apenas cria uma assimetria entre o detentor da teoria e seu objeto, mas transforma esse objeto em um “ele”, um tema de discussão distante de nós, que temos a teoria. Essa perspectiva de terceira pessoa, que objetifica o que vê, é necessária e adequada, em muitas circunstâncias, mas não em todas. Frequentemente precisamos descrever um fato, contar o que alguém nos disse, relatar o que lemos em um livro. Nessas horas, o que vale é uma moral intelectual de objetividade; não podemos incluir na descrição o que não vimos, atribuir ao outro coisas que ele não disse, relatar algo que não está no livro. Não há nada de errado com a perspectiva de terceira pessoa. A criança e o professor, no entanto, entram na escola, em primeiro lugar, em primeira pessoa. Essa distinção é fundamental e, a meu juízo, tem sido objeto de um desequilíbrio crescente.
Quando escrevi Quando Ninguém Educa, procurei mostrar uma ponta desse problema na terceira parte do livro, por exemplo, quando falo sobre o processo de alfabetização e letramento, sobre a pedagogia como renascimento ou sobre o significado da passagem do aluno pelo portão da escola. A escola, em primeira pessoa, é a experiência efetiva de um outro mundo possível, pois depois da passagem do portão da escola, toda e qualquer hierarquia deve depender das regras claras de uma instituição responsável por aprendizagens complexas que não ocorrem na rua. É na escola que, com um pouco de cuidado, surge o contraste com as aprendizagens na casa e na rua. A vivência desse contraste entre a casa, a rua e a escola oportuniza o enriquecimento de sua compreensão sobre o significado de direitos e deveres impessoais. A escola não grita; ali as coisas devem ser apenas ditas e os mistérios do feijão e da vida são introduzidos. A escola não é apenas um lugar onde a criança vai para aprender a ler e escrever e contar, como descrevia Althusser. Ela é o lugar de vivência, em primeira pessoa, de um mundo novo e diferente, onde a cor da pele, o formato dos olhos e o tipo de roupa não devem contar na lista dos méritos pessoais. A escola é a primeira possibilidade de vivência de um âmbito de socialização que não é melhor nem pior do que as vivências familiares e de grupos; ele é diferente e é essencial para a vida da criança.
Em um debate recente sobre o livro, alguém me questionou dizendo que Quando Ninguém Educa parece desprezar a dimensão política da educação. Respondi dizendo que o leitor cuidadoso do livro não fica autorizado a pensar isso; eu não acho que devemos jogar fora a banheira, o bebê e a água. Mas acredito que reuni no livro argumentos suficientes para mostrar que tivemos, sim, uma curvatura da vara em direção à sociologização e politização da educação, um giro teórico e discursivo no qual se privilegiou a perspectiva da terceira pessoa; na verdade essa perspectiva foi absolutizada para que a escola pudesse ser vista de longe, como objeto de reflexão dos teóricos críticos e pós-críticos. A escola ficou longe demais e é por razões como essas que precisamos hoje de mais secretários de educação que considerem como ponto de honra pessoal, como ele escreveu, que as crianças aprendam na hora certa, muito e bem.
Gatti, Bernadete A. & Nunes, Marina Muniz Rossa (orgs.). Formação de Professores para o Ensino Fundamental: estudos de currículos das licenciaturas em Pedagogia, Língua Portuguesa, Matemática e Ciências Biológicas. Fundação Carlos Chagas, v. 29, mar. 2009.
Parra, Nélio In: Catani, Denice Bárbara et al. (orgs.). Universidade, escola e formação de professores. São Paulo: Brasiliense, 1986.
Ronai Rocha é doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), onde foi pró-reitor de graduação. Desde o início de sua vida profissional pesquisou temas ligados à educação.