Havia uma roseira, com flores exageradamente amarelas, ao lado do portão do sobrado construído nos anos 1950, com arquitetura espanhola. Não se tratava de um jardim formal, que Loreta não tinha tempo para cuidar. Ele não era assim tão importante.
Lá dentro, sobre o criado-mudo herança de família, um livro de autor internacional convidava para a reflexão sobre a prosperidade e como obtê-la neste mundo que a terra há de comer. Loreta pegou o livro, abriu lentamente a porta da sala, despediu-se das flores amarelas e foi até o lugar onde passaria o ônibus fretado – seu destino era o trabalho. Novamente o motorista estava de mau humor, e ela o ignorou.
Na portaria do prédio, trocou umas palavras inquietas com o segurança e depois apertou o botão 18 do elevador sofisticado, desses em que uma voz de aeroporto nos informa onde estamos. Não falou nada além de “Bom dia” aos que também subiam.
O físico bem constituído de Loreta levava uma calça jeans em bom estado, e uma blusa branca sob uma jaqueta cáqui. Seus olhos azuis eram circundados por um par de pálpebras pesadas, frutos das noites de insônia das últimas semanas. “Esse trabalho ainda me mata, Deus seja louvado!” – pensou enquanto abria a grande porta de vidro.
Acuada pelo medo do fracasso profissional, puxou da bolsa uma velha agenda e releu cada detalhe do que deveria fazer naquele dia estressado. Nada poderia escapar ao seu controle. Mas a vida não respeitou sua agenda cheia de experiência na arte de nem sempre delegar tarefas. Uma reunião estava nos planos do Diretor de Marketing. Havia metas cumpridas e outras ainda distantes de alcançar o devido êxito. E isso não era nada bom, sobretudo para quem temia pelo insucesso profissional.
O lenço de Loreta engoliu a seco o suor do seu rosto. Ela repetiria o gesto com frequência, enxugando-o mesmo quando tudo estava muito seco, e então enxugaria de novo e de novo e outra vez de novo ao longo do longo dia. O colega ao lado não disse nada. Com o pano de chão entre os dedos, a faxineira coçou a cabeça.
O encontro com o Diretor falou sobre inovação, palavra que traduzia com perfeição a filosofia da empresa de cosméticos. Novos equipamentos. Treinamento. Cobranças. Metas. Caras e bocas nas salas, corredores e até na cozinha onde os funcionários tomavam café e um lanche rápido com frutas da época. Tomou um copo de suco artificial e sentou-se.
Depois de se lembrar de novo de levar para casa a bengala comprada para a mãe, Loreta olhou-se num pequeno espelho e disse para si mesma algumas palavras de ordem que, tamanho o silêncio e a discrição, talvez nem Deus tenha conseguido decifrar.
Loreta escreveu alguns e-mails para colegas da distribuidora com agenda marcada para entrega de mercadorias esperadas pelos supermercados, farmácias e perfumarias. A rede que vai até o consumidor não poderia ser quebrada. Se Loreta falhasse… Para isso se servia da necessidade crônica e exagerada de manter a própria sala e seus objetos em perfeita ordem e no seu lugar. Em casa, na empresa, na vida, ordem era a palavra a qual servia com uma discreta reverência. Ao menos se esforçou para agir como dona da situação.
No entanto, apaixonada pelo hábito de escrever, até então reservado para as horas vagas, fez anotações e até ensaiou um primeiro rascunho para um artigo sobre Comunicação que pretendia escrever até o final de semana. Além disso, fez contatos pessoais. Falou de almoço, viagem e compras. Na hora do almoço, daria uma passada por uma agência de viagens para algumas providências.
Depois olhou novamente para a agenda e novamente voltou os olhos para as anotações trazidas da reunião que havia deixado um leve toque de pressão, ultimato e outras coisas tranquilizantes. Ajeitou o cabelo e olhou longamente pela janela e para qualquer coisa.
Tentou a mágica de associar informações. Pensou no que aconteceria, em termos de resultados, se juntasse um item da sua lista de compromissos com outros, fresquinhos, que acabavam de aterrissar em sua mesa e quebrava a sua organização, tudo rigorosamente previsto. Lembrou-se de que o liquidificador nasceu graças à associação de um motor e a parte superior de uma batedeira de bolo. O truque era cheio de promessas.
A associação de ideias teria dado certo e Loreta seria vista como uma mulher genial. Não deu. Como de costume, a profissional empenhou o melhor das suas energias resolvendo coisas meramente acidentais e deixando em segundo plano as importantes e, pior ainda, as essenciais, prioridades número 1. O reconhecimento do seu desempenho ficou comprometido. Era impossível prever o resultado desse descuido crônico que poderia levar sua trajetória profissional ladeira abaixo.
Loreta checou as horas. Quinze minutos atrás o relógio dizia ainda ser 10h05, mas lá estava ela, surpresa com a velocidade do tempo e sujeitando-se ao fato de que, na realidade, havia chegado a hora do almoço e sua produtividade não receberia qualquer tipo de prêmio num concurso do gênero. O tempo não sabe dar um tempo. Ele tem pressa.
Ela se apressou, não queria se atrasar, porque isso de nada adiantaria no cumprimento das metas exigidas logo na primeira hora do dia. Com uma trena interior, mediu a distância que a separava do cumprimento de todas as tarefas das próximas horas. A ideia era surfar nas ondas desse mar ameaçador, vencendo perigos que se escondem em lugares inusitados.
De novo Loreta se empenhou em usar todos os recursos da criatividade. Saiu do convencional. Encontrou respostas onde havia apenas perguntas – “Quando a água bate na bunda a gente aprende a nadar”, foi o que ouvi em casa, na minha distante adolescência. Ela apoderou-se da sabedoria produzida na roça. Primeiro o essencial, depois o importante e, por fim, o acidental, coisas como anotações para um artigo.
Para não inventar a roda a cada novo desafio, elaborou pequenos métodos de trabalho, que a ajudaria a potencializar cada minuto disponível. Manteve o foco. Mais do que tomar iniciativa, procurava todos os meios para chegar à acabativa.
A pele brilhante do seu rosto ovalado estava ainda mais brilhante, agora de oleosidade misturada com suor que nem teve tempo de enxugar. Mas estava caminhando, comia o boi aos bifes e procurava usar cada novo passo como plataforma de lançamento para o próximo. Dispersa por natureza, nem sempre chegava muito longe.
Em casa, tomou um banho para lavar a alma, essencial, sem se descuidar dos cabelos cor de prata cinza e levemente emaranhados. Sob a água quente do chuveiro, devaneou.
Do outro lado da rua, Nuno, o filho mais velho, se divertia na quadra, correndo com amigos atrás de uma bola vítima de chutes incertos e ao som de gritos com palavras irrepetíveis para o horário. Enquanto isso checou o dia escolar da filha Rafaela, que por vezes conseguia notas louváveis, mas que de resto não era muito íntima dos livros e horários – não raro se perdia entre os compromissos pessoais.
Depois cuidou do cravo amarelo e abasteceu de ração as tigelas da cachorra Mel, uma vira-lata idosa que morava ao lado do forno, na área de serviço, e aproveitou para conferir o estoque de bebidas na adega a serviço de um almoço com os pais no final de semana.
O celular a interrompeu. Do outro lado, Milton a avisava que chegaria mais tarde para o jantar. O marido estava com a visita de executivo na empresa. Loreta, Nuno, Rafaela e Mel jantariam sozinhos. Novamente fariam carreira solo em volta da mesa da sala de jantar, feita com madeira nobre e enfeitada por um vaso de vidro e suas flores verdes e brancas.
Loreta fugia de todos os riscos de fracassar na missão de mãe e profissional. Era preciso bater metas. Filhos, empresa, marido e toda a nação precisavam bater metas.
Na TV, o telejornal falava de excesso de chuvas e deslizamentos. Mostrava efeitos de uma guerra com o prazo de validade pra lá de vencido. Exaltava o surgimento de um novo remédio para neutralizar o Alzheimer. E dava destaque a um novo projeto para a Educação, que prometia igualar os resultados aos obtidos pela Finlândia, com seu currículo focado no desenvolvimento holístico dos alunos. Era ano de eleição presidencial – pronto, falei.
Depois do jantar, veio a novela. Veio o filme. Bateu um sono insistente. Hora de dormir. Naquele momento, isso era essencial.
Rubens Marchioni é palestrante, produtor de conteúdo e escritor. Autor de livros como A conquista e Escrita criativa. Da ideia ao texto. [email protected]. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao