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Primavera revolucionária em Porto Alegre

Por Antonio Pedro Tota

Os últimos dias de setembro de 1930 pareciam como todos os outros dias de uma primavera esperando o verão, normalmente quente na capital gaúcha. A umidade e as chuvas remanescentes não indicavam mudanças inesperadas nem grandes reviravoltas. Mas, no panorama político, as coisas eram diferentes. No dia 3 de outubro, uma sexta-feira, quem andasse pela rua dos Andradas, também conhecida como rua da Praia, pela praça da Alfândega e outras ruas do centro, notaria um clima de expectativa no ar.

O general Gil Antônio Dias de Almeida, comandante da 3º Região Militar do Sul, havia ido ao médico oculista. Ele parecia não enxergar o aumento do movimento pouco comum para uma manhã de sexta-feira. A agitação talvez fosse resultado de notícias de golpe de Estado. Ou mesmo uma impensada revolta silenciosa pela derrota de Getúlio Vargas na eleição, sempre fraudada, para presidente do Brasil na chamada República Velha (1889-1930). Eleição seguida do assassinato de João Pessoa, candidato a vice-presidente de Vargas. Os dois se candidataram pela Aliança Liberal, uma frente ampla formada por políticos mais progressistas. Os oficiais de mais baixo escalão do Exército (tenentes, capitães, mas não só) apoiavam o programa da Aliança. Era, pois, um movimento que se opunha ao domínio da política nacional pela já tradicional dobradinha de paulistas e mineiros.

Primavera revolucionária em Porto Alegre

No período da tarde, o movimento das ruas aumentou. O general, já de volta ao quartel, se deu conta da agitação e pediu uma audiência com Getúlio Vargas, então presidente1 do Rio Grande do Sul. Vargas garantiu que os rumores de um golpe de Estado eram só rumores, nada mais. No entanto, nas ruas era visível a preparação de um movimento de grandes proporções. Visível e audível. Uma comunicação telefônica cifrada alertava que o movimento devia ter início imediato. A conspiração revolucionária se espalhava por todo o estado gaúcho e por algumas regiões do país. Telegramas secretos demonstravam a extensão do movimento: de São Gabriel, de Passo Fundo, de Curitiba. O telegrama da Paraíba era assinado por Juarez Távora, militar e destacado líder da campanha revolucionária.

Porto Alegre continuava cada vez mais agitada. A saída de estudantes depois das duas da tarde aumentava essa agitação. Oswaldo Aranha, um dos mais destacados opositores gaúchos ao antigo regime, com a cumplicidade de soldados, simpáticos ao movimento revolucionário, já havia se incumbido de inutilizar as metralhadoras: retiraram os disparadores das armas localizadas nas “seteiras” no alto do torreão do quartel-general. Os soldados fizeram o mesmo com os detonadores dos canhões em outros quartéis do Exército, no estratégico morro Menino Deus. Ótimas armas, tanto as metralhadoras quanto os canhões, inutilizadas com a ajuda de soldados e cabos, ou seja, “agentes infiltrados” por Aranha nos principais centros militares de Porto Alegre.

Os três primeiros tiros ouvidos no centro da cidade deram o sinal para o início da Revolução. A sincronia das manobras era notável. Um numeroso grupo de soldados da Guarda Civil, com a participação de voluntários jovens, filhos de conhecidas famílias gaúchas, marchou, como num desfile militar-estudantil, pela frente do quartel do 3o Exército. Tinha-se a impressão de que iam passar ao largo; de repente, viraram em direção ao portão em posição de ataque. A fuzilaria começou pouco depois das cinco da tarde.

A participação da Brigada Militar, da Guarda Civil, de soldados do Exército e, principalmente, de populares engrossou o movimento rebelde. O general Gil de Almeida, que residia no mesmo edifício do quartel, temia pela família. A sentinela vigia do portão principal foi fulminada por um tiro certeiro. Revolucionários escalavam o torreão do edifício, confiantes de que as metralhadoras que guarneciam as janelas não funcionariam sem as peças que, segundo algumas testemunhas, estavam nos bolsos de Oswaldo Aranha. Soldados revolucionários sob o comando de Aranha conseguiram entrar no prédio. Um major legalista foi morto na investida. O general comandante do 3º Exército, Gil Almeida, reconheceu que o quartel tinha sido tomado, mas só se rendeu depois que Oswaldo deu por escrito a garantia de integridade física a ele e à sua família. O documento estava assinado por Getúlio Vargas.

Restava ainda neutralizar a artilharia e o depósito de munição localizados no morro Menino Deus. Muitos oficiais estavam comprometidos com a proposta revolucionária, como o tenente-coronel Galdino Esteves, que dirigia importante unidade da artilharia. Ele conseguiu impedir que seus subordinados defendessem suas posições. O Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR) ajudou a derrotar companhias e batalhões do Exército legalista. Em pouco tempo, os comandantes reconheceram a derrota, ordenaram o cessar-fogo e se renderam.

A capital do Rio Grande do Sul estava nas mãos dos revolucionários. Nos dias seguintes, notícias de Santo Ângelo, São Borja, Alegrete, Santana do Livramento e Caxias do Sul informavam que os municípios estavam em poder dos rebeldes. Na capital e em todo o estado, o lenço vermelho amarrado no pescoço de soldados, mulheres, crianças e do povo em geral dava o colorido da vitória em todo o Rio Grande do Sul. Até uma cachorrinha de rua foi vista com o lenço vermelho no pescoço, às margens do rio Guaíba. A grande maioria dos soldados do Exército que tinham defendido o governo federal foi anistiada e, voluntariamente, incorporada às forças revolucionárias. Agora era hora de começar a marcha rumo ao Rio de Janeiro para depor o presidente do país, Washington Luís, inflexível representante de São Paulo, que não acreditava na capacidade da organização dos gaúchos.

Praticamente todo o Norte e o Nordeste, depois de certa resistência com mortos e feridos, estavam também nas mãos dos rebeldes e se preparavam para marchar rumo à capital do país.

A viagem de Vargas e a comitiva político-militar feita por trem demorou cerca de 30 dias para chegar ao Rio de Janeiro. O grupo foi precedido por uma espécie de vanguarda política, liderada por Oswaldo Aranha, que tinha por missão negociar a transmissão do poder a Getúlio Vargas. A junta governativa que comandava o país depois da deposição de Washington Luís não hesitou.

A 3 de novembro, os militares da junta entregaram o poder a Getúlio Vargas no Palácio do Catete. Assim, a chamada Revolução de 1930 foi reconhecida pelo conjunto das Forças Armadas brasileiras.

A Revolução de 1930 foi um movimento armado e nacional. Pode-se dizer também que foi uma manifestação que guarda semelhanças com outros movimentos revolucionários populares, quando se leva em conta a participação de corpos provisórios de milhares de civis que atuaram como Forças Armadas, além da adesão voluntária da maioria das forças do Exército e das forças públicas policiais que, incumbidas de reprimir o movimento rebelde, a ele aderiram. Mas, acima de tudo, lançou as bases para a organização e a formação do Estado moderno brasileiro. Por vias pouco ortodoxas no plano político, social e econômico, nosso país conheceu cerca de 15 anos de crescimento pouco comum. Uma industrialização como o alvo mais acentuado do movimento ou da Revolução. Uma Revolução, com ou sem aspas, mas acentuando a singularidade do modelo brasileiro, como veremos ao longo do livro.


Antonio Pedro Tota é professor de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Mestre e doutor pela Universidade de São Paulo (USP), também fez pós-doutorado na Universidade de Colúmbia (EUA) e na PUC-SP. Pela Contexto é autor dos livros História das guerrasOs americanos e Quem foi Vargas, afinal? 1930-1945.

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