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Pragmática | Lançamento

O estudo linguístico do significado costuma ser dividido em duas áreas, a semântica e a pragmática. A semântica se incumbe do significado das expressões linguísticas, isolando-o do uso efetivo dessas expressões pelos falantes. Para a semântica, são palavras e sentenças os portadores do significado. Cabe a essa área da linguística especificar o significado das palavras (semântica lexical) e a maneira como esses significados se combinam para formar o significado das sentenças (semântica composicional). A semântica é parte da especificação de uma língua e junto ao nosso conhecimento gramatical (fonológico, morfológico e sintático), o conhecimento semântico constitui nossa competência linguística. Expressões linguísticas são objetos abstratos que não se localizam no tempo ou no espaço, e nem entram em relações de causa e efeito com outros eventos. É apenas no uso da linguagem que esses objetos se materializam, convertendo-se em fala individual, instalando-se no tempo e no espaço e influenciando sua audiência. É nessa materialização que se inserem os estudos pragmáticos.

Leia um trecho da obra aqui

Não é particularmente fácil definir o que é ou o que faz a pragmática. Em um artigo na Enciclopédia de Filosofia de Stanford dedicado ao tema, os filósofos Kepa Korta e John Perry listam 14 definições distintas de pragmática encontradas na literatura, muitas das quais buscando diferenciar entre semântica e pragmática. E em seu famoso e frequentemente citado livro-texto, Stephen Levinson usa algumas dezenas de páginas buscando situar a pragmática em um panorama intelectual mais amplo e mostrando o quão difícil é identificar o que a separa de outras áreas dos estudos da linguagem como a psico, a etno ou a sociolinguística. Trata-se, de fato, de uma tarefa árdua. Grosso modo, pragmática tem a ver com o uso da língua, com a transmissão de informação via linguagem, com a maneira como o contexto de fala afeta e é afetado pelos enunciados e com a caracterização das ações e intenções comunicativas envolvidas na interação verbal. Talvez, as palavras-chaves sejam contexto e, sobretudo, comunicação e serão essas as noções que nos guiarão neste livro.

É uma questão um tanto controversa se a linguagem humana é ou não um produto evolutivo que leva em conta as vantagens que a comunicação eficiente traz para a perpetuação da espécie. Não especularemos sobre isso. O fato, porém, é que as línguas naturais são um poderoso meio de comunicação e o conhecimento linguístico é, indubitavelmente, uma valiosa ferramenta para interagir com os outros. Ao comunicarmos linguisticamente, valemo-nos desse conhecimento para codificar conteúdos de uma forma que, esperamos, possa ser decodificada por nossos interlocutores. Presumimos em nossa audiência um conhecimento linguístico que, se não for idêntico, seja ao menos coincidente em boa medida com o nosso. Entretanto, há muito mais nesse processo de (de)codificação do que essas presunções semânticas. Responder a uma pergunta sobre a tenacidade do João com a sentença ele é muito batalhador soará como elogio, mas se a indagação tiver sido sobre sua inteligência, a mesma resposta soará um tanto crítica. A sentença eu não lhe recomendaria uma manga verde transmitirá mensagens diferentes se dita por uma nutricionista ou uma costureira, sendo desnecessário, e até mesmo ofensivo com a inteligência do ouvinte, explicitar que se está falando da cor de uma peça de vestuário ou de uma fruta que ainda não amadureceu. A sentença ele é muito inteligente, se dita enquanto se aponta para o João, nos informará que João é inteligente, mas se dita enquanto se aponta para o Henrique, nos dirá que Henrique é inteligente, sem necessidade de etiquetarmos os referentes com nomes próprios ou descrições que os singularizem.

Como se vê, mesmo nas situações mais corriqueiras, o contexto enriquece e dá suporte ao que dizemos, permitindo-nos um razoável grau de implicitude e auxiliando a preencher lacunas entre o que se diz e o que se quer dizer. Nossas escolhas linguísticas se materializam em ações comunicativas, que por sua vez revelam intenções e atitudes que caracterizam nosso estado psicológico. Falando, externalizamos o que sabemos, acreditamos ou queremos, ou o que queremos que os outros acreditem que sabemos, acreditamos ou queremos. Sendo sinceros ou não, é sobretudo por meio da linguagem que expressamos atitudes, transmitimos mensagens e direcionamos ações, ao mesmo tempo que somos impactados pelo que nos chega por meio dela, provocando-nos sentimentos, trazendo-nos informação e influenciando nossas ações e pensamentos futuros.

Além de serem afetadas pelo contexto, nossas escolhas linguísticas também o afetam. Comunicar é também mudar o contexto. O que comunicamos faz parte de uma dinâmica contextual e no processo de codificação linguística levamos em conta essa dinâmica, embutindo no que dizemos aspectos formais que apontam de que maneira o que dizemos deve ser incorporado ao contexto. Ao serem usadas em uma conversa, orações declarativas, interrogativas e imperativas se convertem em afirmações, indagações, pedidos e muitas outras ações que nos instruem a atualizar o contexto e que pautam nossas próximas ações.

É a essa relação do significado com a dinâmica contextual que caracteriza a comunicação linguística que o subtítulo deste livro se refere. Pretendemos que ele sirva como uma introdução sem pré-requisitos formais aos estudos da pragmática e sua interface com a semântica. Sua leitura requer apenas sensibilidade linguística e capacidade analítica por parte do leitor, mas sem exigir dele nenhuma experiência acadêmica prévia na área.

O livro está dividido em oito capítulos. Os três primeiros têm um caráter mais geral e apresentam ideias e conceitos importantes surgidos no cruzamento de ideias desenvolvidas por linguistas, lógicos e filósofos no decorrer do século XX e que auxiliam na elucidação de uma variedade de fenômenos pragmáticos. Os cinco capítulos restantes têm um viés mais formalista e representam o que se pode chamar de pragmática formal. Essa abordagem se caracteriza pelo uso de ferramentas e técnicas lógico-matemáticas para construção de modelos explícitos de diversos aspectos da comunicação linguística. São, porém, ferramentas bastante modestas e que serão apresentadas e usadas sem pressupor que o leitor já as domine. Para auxiliar na assimilação do conteúdo e para instigar a curiosidade daqueles que após a leitura tenham se sentido atraídos pelo assunto, todos os capítulos terminam com exercícios e recomendações de leitura, privilegiando fontes primárias e secundárias que sejam acessíveis àqueles que tiverem lido este livro. Damos a seguir uma sinopse dos capítulos, que recomendamos serem lidos na ordem em que aparecem.

O capítulo 1 discute a relação entre elementos linguísticos e contextuais na transmissão do significado entre participantes de uma conversa. Alguns conceitos
elementares da interface entre semântica e pragmática são apresentados, incluindo a separação entre significado convencional e conversacional, a distinção entre sentenças, proposições e proferimentos e a indexicalidade embutida na própria semântica de certos itens lexicais.

O capítulo 2 é dedicado às intenções comunicativas que estão na essência da comunicação humana. Entraremos em contato com o influente trabalho do filósofo britânico H. P. Grice e suas ideias sobre a lógica conversacional subjacente às interações comunicativas entre agentes racionais. Comunicar é transmitir um certo tipo complexo de intenção, nos ensina Grice através de suas famosas definições de significado não natural e de implicaturas conversacionais. Seus artigos “Meaning”, de 1957, e “Logic and Conversation”, publicado em 1975, são grandes clássicos modernos.

No capítulo 3, a ênfase estará nas ações comunicativas e no conceito de ato de fala proposto por outro influente filósofo britânico, John Austin, que em sua pequena grande obra How to do things with words (Quando dizer é fazer, na tradução brasileira) nos chama a atenção para o fato de que falar é, sobretudo, agir, e que um ato de fala é bem mais do que a mera vocalização de uma expressão linguística. Sua tripartição entre atos locucionários, ilocucionários e perlocucionários, bem como alguns de seus desdobramentos explorados pelo filósofo John Searle, que foi aluno de Austin, nos elucida como é que agimos com a fala, na fala e pela fala.

A partir do capítulo 4, nossa abordagem será mais explicitamente dinâmica, dando forma à intuição de que o que dizemos tem o potencial de mudar um contexto. Estaremos interessados em como a informação flui durante uma conversa, em como exatamente o contexto de fala afeta e é afetado pelo que é enunciado em um dado momento e na caracterização das ações por trás desse fluxo. Nestes capítulos, veremos a combinação de um componente semântico estático, que atribui valores semânticos a expressões linguísticas independentemente de seu uso, com um componente pragmático dinâmico. A ideia de base é que certos mecanismos eminentemente pragmáticos fazem a ponte entre a expressão de um valor semântico e a mudança de contexto, caracterizada como algum tipo de operação envolvendo esse conteúdo semântico. Essa abordagem tem no filósofo americano Robert Stalnaker um de seus pioneiros e seu defensor mais notável. Em uma série de artigos publicados na década de 1970, ele definiu, em termos dinâmicos e autônomos em relação à linguagem, as noções de asserção e pressuposição. Suas ideias, sobretudo aquelas apresentadas no artigo “Assertion”, de 1978, serão discutidas neste capítulo.

O capítulo 5 retoma as ideias de Stalnaker, mas já remodeladas pelas mãos de linguistas como Irene Heim, que promoveu uma associação mais íntima entre o semântico e o pragmático, a ponto de decretar que o significado de uma sentença é, ele mesmo, um potencial de mudança de contexto. A aplicação mais notável dessa fusão entre semântica e pragmática está no estudo das pressuposições, que Heim apresentou sucintamente em seu trabalho de 1983 “On the projection problem for presuppositions”, outro clássico cujas ideias discutiremos no capítulo 5.

O capítulo 6 é dedicado ao uso de sentenças interrogativas e seu papel na dinâmica contextual. Seguiremos os passos dados pelo lógico holandês Jeroen Groenendijk em seu brilhante artigo de 1999 “The logic of interrogation”. Neste artigo, Groenendijk une a semântica interrogativa que ele e seu assíduo co-autor Martin Stokhof desenvolveram na década de 1980 a uma lógica conversacional ao mesmo tempo declarativa e inquisitiva e a partir da qual ele formaliza as noções griceanas de informatividade e relevância, cruciais na interação comunicativa racional.

O capítulo 7 é uma incursão no tratamento dinâmico das sentenças imperativas e das solicitações de ação que elas evocam. Tomaremos por base os trabalhos do linguista Paul Portner, que propôs uma tripartição do contexto em compartimentos que armazenam informações, questões e tarefas compartilhadas pelos interlocutores, em sintonia com os principais tipos oracionais e constantemente alterados no curso de uma conversa pelo uso de orações declarativas, interrogativas e imperativas.

Por fim, o capítulo 8 aborda o tema conhecido como estrutura informacional, em que noções como tópico, foco e contraste são sinalizadas sentencialmente, impondo condições de uso na forma de congruências entre perguntas e respostas. Apresentaremos a formalização destas noções linguístico-pragmáticas através da semântica de alternativas desenvolvida pelo linguista Mats Rooth para o tratamento do foco e aprimorada pelo também linguista Daniel Büring para o tratamento de tópicos contrastivos a partir de suas dissertações das décadas de 1980 e 1990 respectivamente.

O material de base que serviu de ponto de partida para a escrita deste livro foram notas de sala de aula que fui juntando quando ofereci a disciplina Pragmática para a graduação no período 2018-2020 e a disciplina Tópicos em Pragmática Formal para a pós-graduação em 2019, ambas na Universidade de São Paulo. Aos alunos dessas turmas, agradeço os questionamentos e dúvidas levantados em sala de aula que me levaram a aprimorar a organização e o caráter didático do livro. No mesmo sentido, agradeço ao professor Marcos Goldnadel e aos alunos do minicurso que ministrei na Universidade Federal do Rio Grande do Sul em agosto de 2019, quando tive a oportunidade de apresentar em um formato mais compacto o material que agora constitui alguns capítulos do livro.

A primeira versão completa do livro foi escrita em 2020, no sítio de meu pai em Matias Barbosa, Minas Gerais, para onde me mudei com minha família por quase um ano na época do auge da pandemia de COVID-19. Reitero aqui os agradecimentos que já registrei em meu último livro, também escrito naquele período, a todos com quem tive o privilégio de conviver naquele momento de isolamento social: Elaine, Henrique, João Pedro, José Olindo, Matheus, Paula, Rodrigo e Vicentina. Já de volta a São Paulo, fiz uma primeira revisão do manuscrito em 2021, tendo por base os comentários que Gabriel Othero fez dos primeiros capítulos e das correções feitas por Camila Silvestre após a leitura minuciosa que fez de todo o material. Agradeço imensamente ao Gabriel e à Camila a ajuda nessa fase intermediária de preparação do livro.

Por fim, em 2022, fiz uma segunda revisão do manuscrito, reescrevendo e reorganizando todos os capítulos, além de realocar certas partes mais técnicas em apêndices ao final do livro. Essa nova versão foi lida por um(a) parecerista anônimo(a) da Editora Contexto e por Elaine Grolla, a quem sou muito grato e que detectaram mais alguns erros, além de fazerem várias sugestões que contribuíram para a clareza da apresentação.

Planejar, organizar, escrever e revisar é um processo árduo, alternando momentos de euforia à medida que se vê a obra evoluindo e momentos de desapontamento quando não se consegue expor de maneira clara o que se tem em mente ou quando a coisa simplesmente emperra. Em todos esses momentos tive a sorte de ter ao meu lado alguém com quem compartilhar altos e baixos, alguém que esteve sempre me apoiando e me animando. E assim tem sido nesses já quase trinta anos em que estamos juntos. À Elaine, dedico este livro com todo amor e carinho!


Marcelo Ferreira é professor associado (livre-docente) do Departamento de Linguística da Universidade de São Paulo. Possui doutorado em linguística pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT), com especialização em semântica formal. Sua principal área de atuação é a semântica e suas interfaces com a sintaxe e apragmática. O foco principal de sua pesquisa tem sido os domínios da temporalidade e da modalidade. É autor dos livros Curso de Semântica Formal, publicado pela editora Language Science Press, Semântica: uma introdução ao estudo formal do significado, pela Editora Contexto, e coautor (com Marcos Lopes) do livro Para Conhecer: Linguística Computacional, também pela Editora Contexto. É autor de artigos publicados em periódicos especializados como Natural Language Semantics, Journal of Semantics e Journal of Portuguese Linguistics, além de capítulos de livro de editoras como Oxford University Press, Wiley-Blackwell e John Benjamins. É pesquisador e bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq.

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