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Por uma boa causa | Rubens Marchioni

Os dentes pequenos de Valquíria pareciam ainda menores, inexistentes talvez, depois que fez a cirurgia malsucedida de correção dos lábios. Ela havia se transformado numa jovem banguela com 31 dentes na boca – apenas um molar havia partido, ido embora para sempre, derrotado sem esforço por uma cárie sem pressa. A dor que sentia do lado esquerdo da boca não doía muito, era apenas insistente, como um pernilongo, que incomoda mais que um elefante.

Por uma boa causa | Rubens Marchioni

Valquíria não se sentia confortável com a situação, e esperava por uma cirurgia plástica que corrigisse esse detalhe – detalhe? – nem um pouco harmonioso. Tinha vontade de se esconder de si mesma, derreter em baixo de uma tempestade. De resto, desejava quebrar os espelhos de casa e fugir dos que se encontram por todo canto, principalmente daqueles que ficam nos provadores de roupas das lojas, sempre dados à prática da calúnia e difamação dizendo coisas horríveis sobre nosso corpo rigorosamente em forma.

No entanto, era costume da sua região, dominada por alguns princípios religiosos feitos de aço, rejeitar qualquer alteração na fisionomia de uma pessoa, como se desejar a beleza e o estar bem consigo mesma fosse um pecado. A crença também garantia que a pena para isso, vinda diretamente dos céus, era uma sequência de 7 anos de atraso na vida pessoal e dos familiares, incluindo o médico que praticou o suposto sacrilégio.

Valquíria era uma mulher magra, e encontrava jeitos de perder ainda mais alguns quilos, descaracterizando o próprio corpo. O motivo era sabido: seu rosto não causava boa impressão no mercado municipal, na igreja, no shopping, no trabalho e na busca por um grande amor. Ela só não sabia se o bondoso Criador entenderia seu drama e, às vezes, duvidava até mesmo da própria dúvida.

Enquanto o milagre da transformação física não acontecia, tudo parecia queimar suas esperanças de ser aceita, até mesmo no grupo de amigas e nas redes sociais, onde todos são lindos – era o que imaginava, e esse pensamento provocava uma emoção que ficava entalada, nem para frente, nem para trás, feito carro preso em buraco profundo e cheio de barro.

No caminho por onde passava, ainda no mesmo endereço que pretendia deixar para trás, havia um pé de hortênsia. Sem que quase ninguém notasse, Valquíria parava um pouco diante dele e, sussurrando, deixava ali algumas de suas frustrações. Falava da própria vaidade ultrajada e do desejo de voltar a uma vida normal, da mesma forma que acontece com as plantas depois de um inverno rigoroso.

Descontente com a própria imagem, Valquíria planejou uma mudança de cidade, sem se dar conta de que seu rosto iria com ela e seria sempre a primeira parte do corpo a ser notada, inclusive por ela mesma.

Como se fugisse, viajou. Instalou-se num pequeno hotel e procurou saber onde ficava uma clínica de cirurgia plástica. Não foi difícil encontrar, o Google sabe tudo e está sempre pronto para atender aos pedidos de seus devotos, que nem sempre usam a palavra exata na hora das suas preces e se afogam ao invés de apenas navegar. “São Google, rogai por nós que recorremos a vós. Só não leve tudo ao pé da letra, a vida não é assim, cara; se pedimos para ver uma fantasia para a festa de 15 anos de uma garota, não nos arraste para um sex shop virtual. Amém”.

Enquanto se encontrava fora, trabalhou em home office, para não interromper as atividades profissionais num escritório de advocacia, emprego cobiçado por 11 entre 10 novos bacharéis em Direito, alguns deles formados pela faculdade que ficava há 46 quilômetros dali e por advogados de todas as especialidades.

Valquíria esperava colocar a parte triste da sua história sob a lâmina afiada de uma guilhotina, para que deixasse de existir e não servisse nem mesmo para reciclagem.

Numa festa, conheceu e se apaixonou por Vidal, um Engenheiro Florestal que, chefiando uma equipe composta por 14 membros, atuava em áreas desmatadas e fazia muito mais do que pedia sua função.

Bem que Valquíria se esforçou para que ele fosse seu amigo, nada mais que amigo. Não conseguiu. Apressado, o coração queimou etapas e logo desejou mais do que isso. E foi correspondida em seu desejo de encontrar um companheiro.

Mais do que em matrimônio, em regime universal de tudo, Valquíria uniu-se a Vidal no projeto de resgatar a vida das matas e dos seus habitantes, inclusive das cobras perigosas que ameaçavam os homens de uma pequena cidade e se alimentavam de qualquer ser vivo que encontrassem em seu caminho, embora tivessem uma preferência escancarada por carne de frango. Tudo era de Valquíria e Vidal e nada era deles.

Ela relativizou e quase esqueceu o problema da face. Acabou deixando de lado as preocupações com a aparência. Quando encontrava um animal ferido, ou que não ganharia qualquer concurso de design, logo estabelecia com ele uma conexão, porque ao menos entre os seres da floresta não seria excluída. Presencialmente ou em home office, ela advogava em favor da causa da preservação da fauna e da flora junto a uma ONG. Algumas vezes sofreu ameaças de desafetos da sua causa, pessoas físicas e jurídicas, mas essa era outra história.

A lembrança de que desejar transformar o corpo, sobretudo o rosto, traria desgraças, crença alimentada pela pequena cidade encravada numa região que parecia desconhecer calendário e até mesmo relógio, se transformou no desejo de ganhar mais tempo para existir e trabalhar mais e melhor do que antes.

Agora Valquíria era uma mulher feliz, ao lado do marido e junto dos animais que haviam se transformado em sua grande causa, defendida até os últimos limites ou além deles.

Essa foi a história que li, durante um cafezinho com Andréa, amizade que começou quando tínhamos dez ou onze anos de idade, numa pequena cidade sem grandes histórias, nem mesmo de uma advogada que deixou o escritório para viver perto de uma grande floresta.

Claro que achei aquilo tudo chocante, perturbador. Andréa, no entanto, jurava que era verdade, nada mais que a verdade, somente a verdade; tudo se baseava em fatos reais.

Passado algum tempo, quando almoçávamos depois da visita a um museu, ela revelou:

– Sabe a história da Valquíria, aquela moça com uma deformação na boca, que deixou o emprego, se casou com um Engenheiro Florestal e foi cuidar de animais em risco de extinção?
– Sim, sei. Você teve notícias dela?
– Dela quem?
– Da Valquíria, oras! Não é dela que está falando?
– Que Valquíria? Não tem Valquíria nenhuma. Foi minha tia que inventou tudo aquilo. Eu só aumentei algumas coisas e escrevi do jeito que eu sei. Contei pra te impressionar. 
– Sei. Vou pedir um café e a conta.
– Deixa que eu pago. Mas isso não tem nada a ver com a minha tia, é verdade, eu pago.
– Garçom!


Rubens Marchioni é palestrante, produtor de conteúdo e escritor. Autor de livros como A conquista Escrita criativa. Da ideia ao texto[email protected]. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao

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