Que o mundo está muito menor do que antes, todos sabemos. Calma, não estou anunciando mais uma catástrofe em nosso velho e bom planeta, mas simplesmente alertando para o contínuo aperfeiçoamento do sistema de transportes e comunicações. Nós nos acostumamos a medir a distância em tempo (Campinas e o Rio de Janeiro ficam à mesma distância de São Paulo, dependendo da via escolhida, Anhanguera, ou via aérea) e isto faz todo sentido. Parentes e amigos que vivem a milhares de quilômetros de nossa casa podem estar mais próximos do que filhos ingratos que se esquecem da existência dos próprios pais embora vivam no prédio ao lado, graças aos veículos eletrônicos e à língua inglesa que, gostemos ou não, se tornou uma língua internacional.
O fato é que a globalização, ao contrário do que afirmam os paranoicos, não foi um sistema criado pelo serviço secreto americano para submeter o resto do mundo sem a necessidade de viajar muito – os americanos só viajam para ver Niagara Falls e têm a pretensão de que aquela cachoeirinha é mais bonita do que Foz de Iguaçu. Mas, como dizia, a globalização é decorrência de um processo de aproximação entre os povos, algo que começou na pré-história e continua até hoje. Embora curiosidade e espírito de aventura não estejam entre as categorias explicativas usuais dos historiadores e economistas, ambas tem sido eficazes em tirar os seres humanos da zona de conforto e faze-los conhecer outras regiões e outras culturas. E, eventualmente, começar a trocar produtos desenvolvidos em sua região por outros abundantes em outras plagas. Comércio não é só entrar em um shopping e pagar sobre preços por produtos da moda, mas tem sido uma das formas mais eficazes de contato entre grupos humanos distintos. Não por acaso, dois povos com grande experiência marítima, ambos excelentes comerciantes, os fenícios e os gregos, criaram e desenvolveram alfabetos que, até hoje são utilizados, com pequenas alterações. Fenícios e gregos aproximaram povos e culturas, levaram conhecimento de um lado para outro do Mediterrâneo, contribuíram para a globalização.
Um importante historiador francês escreveu sobre a mudança do eixo principal do comércio e da economia, a partir do século XVI, quando Europa, África e Américas passaram a manter intenso comércio, que envolvia gente e produtos tropicais, abrindo espaço para a criação do capitalismo comercial, a produção de manufaturados, o fim do Antigo Regime, o crescimento da Holanda e da Inglaterra e um encontro intenso (embora, frequentemente agressivo) de culturas. Um passo dolorido, mas inegável no processo de globalização.
Gosto de lembrar que um dos momentos mais importantes desse processo se deu por ocasião da Revolução Francesa. A concepção (embora não inteiramente realizada, reconheço) de que os seres humanos são cidadãos, independentemente de sua origem social ou estamental, que mulheres e homens são iguais, é a base da concepção de cidadania que, aos trancos e barrancos, começou a ser implantado em todo o mundo. Por esta razão, não pelas cabeças decepadas pela guilhotina, a Revolução Francesa é um marco.
Hoje a globalização tem sido contestada e é bom que seja discutida. O desrespeito ao nosso planeta, em nome do progresso, costuma agredi-lo mais fundo do que ele aguenta. Mas, em nome de um multiculturalismo equivocado, estamos aceitando e desculpando práticas antiglobalização que já deveriam estar no lixo da História como a submissão das mulheres, a agressão aos homossexuais, a falta de liberdade de expressão e a exploração de minorias.
Independentemente de nossas convicções políticas, se não tivermos uma pauta para o mundo, que inclua, antes de tudo, a manutenção de direitos de cidadania para homens e mulheres, não avançaremos. Não se pode ser leniente com estruturas políticas antidemocráticas, venham de amigos ou adversários. Não podemos aceitar mulheres com menos direitos do que homens. Não podemos jogar fora a parte boa da fruta e nos alimentar da estragada. Isto tem nome: retrocesso.
Jaime Pinsky é historiador e editor. Completou sua pós-graduação na USP, onde também obteve os títulos de doutor e livre-docente. Foi professor na Unesp, na própria USP e na Unicamp, onde foi efetivado como professor adjunto e professor titular. Participa de congressos, profere palestras e desenvolve cursos. Atuou nos EUA, no México, em Porto Rico, em Cuba, na França, em Israel, e nas principais instituições universitárias brasileiras, do Acre ao Rio Grande do Sul. Criou e dirigiu as revistas de Ciências Sociais, Debate & Crítica e Contexto. Escreve regularmente no Correio Braziliense e, eventualmente, em outros jornais e revistas.