“Muitas vezes, no meu próprio país, passo por estrangeira por causa da minha cor, do cabelo encaracolado, e tenho que dizer com orgulho que sou chilena, tendo que suportar a descrença de muitos e muitos.”
Estas palavras da ativista Marta Salgado descrevem a realidade que muitos afrodescendentes enfrentam tanto no Chile quanto na vizinha Argentina, países onde a seguinte frase se tornou comum: “Aqui não há negros”.
Embora seja verdade que, historicamente, a porcentagem de população negra nesses dois países tenha sido muito menor do que em outras nações latino-americanas, as coisas eram diferentes na época da colônia.
Segundo registros históricos, há 200 anos, em cidades como Buenos Aires e Santiago, os negros chegaram a representar mais de 20% da população, número que pode chegar a 60% em outros locais onde negros escravizados traficados da África eram central para economias locais.
Especialistas ouvidos pela BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) concordam que, durante décadas, historiadores no Chile e na Argentina, determinados a construir uma identidade nacional baseada principalmente na herança europeia, ignoraram a contribuição crucial de escravizados e seus descendentes para o desenvolvimento econômico, cultural e político de ambos os países.
Quando a presença dos negros não era negada, tendia a ser relativizada com argumentos como os de que foram poucos que chegaram ou que aqueles que foram para lá ou foram embora ou não sobreviveram ao frio ou a doenças.
No país vizinho Uruguai, no entanto, a presença de afrodescendentes tem sido constante desde a época da colônia – representando atualmente cerca de 8% da população do país – e, apesar da histórica discriminação sofrida por esse grupo, a herança afro está presente em importantes manifestações culturais do país, como o famoso carnaval de Montevidéu.
No Brasil, segundo dados de 2016 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a parcela de pessoas que se autodeclaram pardas representava 46,7% da população e a de pretos, 8,2%. Os brancos eram 44,2%.
Uma história diferente
A presença de negros no Cone Sul é um fenômeno que pode ser rastreado até os tempos da conquista, no século 16, quando já havia registros de pessoas de ascendência africana que chegaram escravizados.
“O que sabemos é que, no total, durante todo o período colonial, cerca de 12 milhões de escravos foram traficados de um continente para outro”, explica Juan José Martinez Barraza, historiador econômico da Universidade de Santiago do Chile.
“Os 70 mil escravos que chegaram ao Cone Sul, principalmente pelo Rio da Prata, representam cerca de 1% do tráfico total. Isso pode parecer insignificante, mas não é, devido ao que representaram em termos econômicos”, diz o historiador.
“Por exemplo, em Santiago, em 1777, havia 40 mil habitantes, em Lima, cerca de 50 mil. Portanto, a vinda de 70 mil pessoas, que também se reproduziam, foi, sim, significativa em termos econômicos.”
Os negros escravizados chegaram principalmente pelos portos de Montevidéu e Buenos Aires. De lá, alguns foram enviados para as províncias do interior da atual Argentina ou para Santiago e Valparaíso, de onde foram transferidos por mar para o norte.
Muitos deles ficaram nas cidades para realizar trabalhos domésticos ou artesanais. Outros foram forçados a trabalhar nos campos ou nas minas.
De acordo com Juan Jose Martinez Barraza, “quando a historiografia liberal enfatizou a república nascente e deixou para trás a colônia, colocou debaixo do tapete tudo relacionado à escravidão e escravos”.
Uma mãe da pátria negra
Na Argentina, o esquecimento historiográfico sobre a contribuição e presença da população afrodescendente têm sido muito semelhante, explica o historiador Felipe Pigna à BBC News Mundo.
“A invisibilidade dos negros na história é tremenda, eles praticamente não são mencionados”, diz Pigna. “Houve uma manipulação que se tornou história oficial nas escolas, e permaneceu como história canônica, na qual nem mulheres, nem povos nativos, nem afrodescendentes tinham lugar.”
“Felizmente isso tem mudado e foi demonstrado que essa história era em grande parte falsa.”
Pigna cita como um exemplo deste processo de invisibilidade o caso de Maria Remedios del Valle, “que era uma mulher de ascendência africana que participou dos exércitos de Manuel Belgrano, um dos libertadores, em todas as suas batalhas”.
Por causa de suas contribuições, ela foi proclamada mãe da pátria argentina, “a única mulher em nossa história”, aponta o historiador.
“Mas em 1870, quando começaram a reescrever a história sobre a imigração, eles acharam que não era muito coerente ter uma mãe da pátria negra, quando se promovia uma imigração branca, e passaram a ignorá-la e eliminá-la da história, e foi assim que a fizeram desaparecer.”
Esse processo de ocultação da herança negra continua afetando os afrodescendentes hoje, que lutam há décadas para reconhecer sua história e seus direitos.
‘Um país racista’
Marta Salgado, da Organização Ouro Negro, tem sido uma das faces mais visíveis dos afrodescendentes chilenos há duas décadas.
Salgado vive em Arica, uma cidade que o Chile tomou do Peru no final do século 19, na Guerra do Pacífico, época em que mais de 50% da população era de origem africana.
“Não estamos nos currículos escolares, o Ministério da Educação nunca fez nada para ensinar ao povo do Chile que havia africanos escravizados e, portanto, há descendentes”, explica Salgado em conversa com a BBC News Mundo.
“O Chile é um país discriminatório e racista e também xenófobo, mas diz-se que não é, mas lá no fundo há muito racismo e muita discriminação, porque se diz que nascemos de europeus, e esse não é o caso”.
Salgado tem muitas anedotas sobre o que teve que enfrentar devido à sua origem.
“Eu já passei por cubana, peruana, colombiana… Muitas vezes quando eu digo que sou chilena eles me olham estranho (…) Uma vez, eu era mais jovem, em Santiago, me perguntaram onde eu ia fazer o show, pensando que eu era de outro país”, diz o ativista.
“Eles olham para você por causa da sua cor de pele e por causa do seu fenótipo e não por causa do que você é e é por isso que é difícil uma pessoa de descendência africana se posicionar, especialmente se ela é uma mulher.”
“Quis negar minha família”
Cristian Báez, um pesquisador experiente e ativista afrodescendente que também mora em Arica, diz que seus ancestrais passaram por um processo de “branqueamento” depois que a cidade ficou sob o controle chileno.
“Quando o Chile tomou este lugar, disseram aos que estavam aqui que, se quisessem ficar, teriam que se tornar chilenos, e esse foi um processo muito maquiavélico. Tiveram que se branquear para deixarem de ser peruanos. E com esse branqueamento, proibiram tradições e costumes que vieram de uma herança ancestral africana”, explica Báez, que é fundador da ONG Lumbanga.
Báez diz que, como muitos afrodescendentes, ele sofreu rejeição dentro de seu próprio país desde cedo.
“Na escola, eles me discriminavam por duas coisas, primeiro por ter cabelos escuros e depois por morar em uma área rural. Então eu sofri muito bullying por ser negro e de Azapa.”
“Quando meus colegas queriam ir a Azapa para conhecer a casa da minha avó, eu negava porque eu tinha vergonha da minha avó negra e meu pai negro, queria negar minha família”, diz o ativista.
Báez diz que ser afrodescendente faz com que ele “entenda que, a cada processo de luta”, de alguma forma, “estou consertando o estrago do que fizeram com meus antepassados”.
Uma lei que os reconheça
O trabalho de organizações como Ouro Negro e Lumbaga foi finalmente recompensado em abril deste ano com a promulgação no Chile de uma lei que concede reconhecimento legal a afrodescendentes e “sua identidade cultural, idioma, tradição histórica, cultura, instituições e visão de mundo”.
O regulamento contempla sua inclusão como população no censo e determina que as escolas ensinem “a história, a língua e a cultura dos afrodescendentes”.
Após a promulgação da lei 21.151, Vlado Mirosevic, um membro do Partido Liberal e um dos promotores dos regulamentos, disse que eles estavam “muito felizes por este passo em direção a um Chile multicultural e diverso”.
De sua parte, o senador do Partido Socialista da região de Arica e Parinacota, José Miguel Insulza, disse que a lei “faz justiça a muitos chilenos cujos antepassados vieram a esta terra séculos atrás”.
Espera-se que em meados de junho haja eventos no Congresso Nacional em Valparaíso e no Palácio de La Moneda, em Santiago, para comemorar a promulgação da legislação.
Essa vitória política esteve muito presente no carnaval afrodescendente que ocorreu em março em Arica. Vários grupos musicais percorreram o centro da cidade em um colorido desfile.
Este festival cheio de ritmo e cor que acontece todos os anos há mais de quinze anos visa celebrar a herança africana de uma população cuja identidade tem sido historicamente negada.
O processo de se estrangeirar
A mesma luta que Marta Salgado e Cristian Báez lideram no Chile tem sido realizada na Argentina nos últimos anos pelo afro-ativista Carlos Álvarez Nazareno.
Ele, que vive na Argentina há 15 anos, é originário do Uruguai, país em que, explica, embora exista uma maior presença histórica de afrodescendentes, cresceu “sob o jugo da discriminação, do racismo e do ridículo”.
“Isso aconteceu 30 anos atrás e continua acontecendo hoje, e nossos jovens continuam denunciando o racismo de seus colegas e até dos próprios professores nas salas de aula”, explica.
Álvarez comenta como na Argentina, historicamente, “foi reconhecida a contribuição de espanhóis, italianos ou judeus e se negou a contribuição das comunidades afrodescendentes e africanas”.
O ativista conta como, em sua vida diária, ele vive o que descreve como um processo de “estrangeirização”.
“A primeira pergunta que eles fazem na rua é de onde você é, eles comentam o quanto você fala bem espanhol. Quando você vai fazer um procedimento burocrático qualquer, a mesma coisa acontece. As pessoas pensam que, se você é negro, não pode ser dessas latitudes “.
“É por isso que imigrantes dos países africanos sofrem racismo e assédio policial nas ruas de Buenos Aires”, diz.
Alvarez cita como exemplos de conquistas da comunidade afro na Argentina as comemorações do dia 8 de novembro, quando se celebra no país o Dia dos Afro-Argentinos, em homenagem a María Remedios del Valle.
E o fato de terem sido incluídos no censo de 2010, “em que 150 mil pessoas foram reconhecidas como afrodescendentes, embora saibamos que há mais de 2 milhões no país”.
Parte dos historiadores afirma que essa cifra de 2 milhões é exagerada, embora sustente que deve-se acabar com o mito de que a maioria das pessoas de ascendência africana na Argentina morreu nas guerras da independência ou por causa de doenças.
Embora estes tenham sido fatores importantes na diminuição da população negra do país, particularmente na população masculina, a miscigenação também desempenhou um papel fundamental, o que explica por que muitos argentinos não saibam que em sua árvore genealógica pode haver uma pessoa que há não muitos séculos foi tirada à força da África.
Presença real
No Chile, foi também o processo de mestiçagem que tornou a população afrodescendente cada vez menos visível.
“A etnia chilena é um grupo étnico em que a presença do sangue negro é real, é importante, mas comparado a outros países não é tão visível”, explica Baldomero Estrada, professor titular do Instituto de História da Pontifícia Universidade Católica de Valparaíso.
“Do total, 90% dos espanhóis que vieram para este território eram homens, então eles se misturaram com os índios, e é aí que a miscigenação começa, e quando os negros chegam, a mesma coisa acontece, eles se misturam e são absorvidos muito rapidamente”, diz Estrada em conversa com a BBC News Mundo.
“Não há grupos étnicos que mantenham características permanentes e visíveis, no caso dos Mapuches, eles também são muito misturados, e é muito difícil encontrar um que seja mapuche puro.”
A avó no armário
Embora a herança genética de pessoas de ascendência africana no Chile e na Argentina hoje não seja tão visível, há outro tipo de legado que sobreviveu até hoje, segundo o historiador Felipe Pigna.
“A herança cultural é muito poderosa e podemos vê-la na dança argentina por excelência que é o tango, que tem claramente origens negras”, ressalta o historiador.
“Grande parte do nosso folclore, o samba, chacarera e muitos ritmos do folclore argentino têm uma influência africana. Há também as nossas palavras de vocabulário que permanecem como um legado.”
Entre as palavras que os linguistas consideram ter origem afro estão palavras como quilombo, milonga, candomblé, marimba, tango, matungo, mandinga, dengue ou mucama.
O ativista Carlos Álvarez acredita que os argentinos devem “tirar a avó afro do armário”.
“Para ter uma sociedade muito mais igualitária e justa, devemos valorizar nossa contribuição e fazer com que as crianças e adolescentes tenham orgulho de seus antepassados.”
Fonte: BBC News Brasil