Para compreender a crise da ordem política democrática no Brasil é essencial analisar a posição dos meios de comunicação de massa. Não se trata apenas de estudar seu comportamento, claramente enviesado, ao longo do tempo. Trata-se também de entender o lugar que a mídia ocupa no sistema político brasileiro – e como, deste lugar, ela desempenha o papel de obstáculo permanente ao aprofundamento das práticas democráticas.
Em geral, os modelos com os quais a ciência política trabalha ignoram a mídia ou, no máximo, concedem a ela um estatuto secundário. Admite-se que o funcionamento do regime democrático depende do provimento de uma certa quantidade de “informação”, mas há pouca curiosidade para entender como operam os sistemas que produzem esta informação. Aceita-se o valor da “liberdade de expressão” sem indagar com ela se efetiva. Para algumas vertentes da teoria democrática liberal, a disputa política serve de garantia de que o público terá acesso a relatos contraditórios sobre a realidade, uma vez que cada partido ou grupo de interesse tentará divulgar sua própria versão dos fatos para o maior número possível de pessoas. Assim, os cidadãos teriam condições de construir seus próprios julgamentos a partir de uma pluralidade de pontos de vista (é o que diz Anthony Downs). Para outras, a concorrência mercantil entre os meios de comunicação gera um sistema “autocontrolado”, no qual todos terão incentivos para disponibilizar a informação mais verdadeira e serão punidos, pelos próprios mecanismos de mercado, caso não o façam (como dizia Giovanni Sartori). Mas o desinteresse da ciência política, que considera que a comunicação é um problema desimportante ou que se resolve de maneira automática, contrasta com a preocupação obsessiva que os candidatos à liderança política têm com a gestão de sua visibilidade pública.
O autodiscurso dos próprios meios de comunicação também costuma apresentá-los como externos ao campo político. De maneira geral, o jornalismo – que não é a única, mas é a faceta mais visível da influência da mídia na vida política cotidiana – se coloca como mero reflexo do mundo, um canal neutro pelo qual passam os “fatos” para que o público possa tomar conhecimento deles. Ainda que hoje esteja disseminada a crítica aos ideais canônicos de imparcialidade, neutralidade e objetividade jornalísticas, que primeiranistas de Comunicação já reconhecem como inatingíveis e enganadores, eles continuam centrais na produção da legitimidade da mídia diante do público. Em relação ao sistema político, o discurso ostensivo do jornalismo é a posição de cão de guarda, desvelando as ações dos funcionários do Estado e permitindo que a cidadania os julgue. De acordo com a expressão convencional, ele seria o “quarto poder”, cuja função é controlar os outros três – o que converge com a outra metáfora, já que a forma específica deste controle é dar publicidade aos atos dos governantes, de maneira que o público esteja capacitado a fornecer seu veredito. O jornalismo seria o principal mecanismo para permitir a accountability do sistema político.
Essa narrativa é mítica. A imparcialidade é inacessível, mesmo que seja buscada com sinceridade, uma vez que todos nós vemos o mundo a partir de uma determinada perspectiva – vinculada à nossa posição social, à nossa trajetória e aos interesses aos quais estamos ligados. No momento em que define quais são os fatos que serão noticiados e qual o destaque que cada um receberá, o jornalismo aplica critérios de seleção e de hierarquização que estão longe de ser objetivos (como queria a teoria dos valores-notícia, hoje desacreditada). Mas esses critérios passam a transitar socialmente como universais exatamente porque ganham a visibilidade concedida pela mídia. Quando o jornalismo transforma um fato em notícia, faz com que ele receba atenção pública e o torna importante por isso. Quando aplica sua própria regra e decide “dar voz aos dois lados”, está determinando quais lados da controvérsia são os relevantes. Ao exercer sua função de cão de guarda e denunciar as transgressões de funcionários públicos, transforma em fato aquilo que é um julgamento moral de valor e, assim, contribui para fixar uma determinada fronteira entre certo e errado. As escolhas do jornalismo, portanto, incidem sobre o mundo social e ajudam a moldá-lo.
Quanto mais plural é o conteúdo da mídia, maior a diversidade de visões de mundo disputando a esfera pública. Trata-se de uma exigência para o funcionamento efetivo do regime democrático. É possível ver nos meios de comunicação de massa uma esfera informal de representação política: já que é impossível que todos intervenham diretamente no debate público, ele é travado no ambiente proporcionado pela mídia por representantes das diferentes posições políticas e interesses sociais. Quanto mais enviesada é esta representação, pior a qualidade da mídia – e da democracia.
Luis Felipe Miguel (Rio de Janeiro, 1967) é doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor titular do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê). É pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e autor de diversos livros.