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“Pensar que se resolve a alfabetização com o método fônico é uma ignorância”

A professora emérita da UFMG, Magda Soares, rebate as críticas feitas pelo secretário de Alfabetização, Carlos Nadalim.


Créditos: Manuela Peixoto / Arquivo Ceale
Créditos: Manuela Peixoto / Arquivo Ceale

A professora emérita da Faculdade de Educação (FAE) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Magda Soares, também pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale), tem mais de 60 anos dedicados à área da alfabetização, entre pesquisas, formação de professores e atuação direta em redes de ensino.

Seu acúmulo de conhecimento deu origem a várias publicações e livros, três dos quais publicados pela Editora Contexto: Alfabetização e Letramento (2017); Alfabetização, a questão dos métodos (2016) e Linguagem e Escola, uma perspectiva social (2017).

A defesa da educadora pela alfabetização enquanto processo que deve levar em consideração não só a apropriação de um sistema alfabético, mas também apoiar as crianças a fazerem o uso social da leitura e da escrita, vem sofrendo ataques por representantes do atual governo.

O novo secretário de Alfabetização do Ministério da Educação, Carlos Nadalim, publicou um vídeo em maio em seu canal “Como Educar seus Filhos”, chamado “Letramento, o vilão da alfabetização no Brasil”. Durante 23 minutos, o discípulo de Olavo de Carvalho, indicado por ele ao ministro da educação Ricardo Vélez Rodríguez, defende o método fônico como alternativa para a alfabetização, ao mesmo tempo em que tece críticas ao que chama de “velho binômio alfabetização e letramento”.

Nadalim, que atuou como coordenador na escola Mundo do Balão Mágico, em Londrina, fundada por sua mãe, que atendia 150 alunos, também classifica o letramento como “uma reinvenção construtivista da alfabetização, fruto de uma preocupação exagerada com a construção de uma sociedade igualitária, democrática e pluralista em formar leitores críticos, engajados e conscientes”.

Esta semana, a concepção de Nadalim – de atrelar a alfabetização a um método – se cristalizou no programa “Alfabetização Acima de Tudo”, apresentado pelo atual governo como uma das metas prioritárias para os 100 dias de gestão.

Em entrevista ao Carta Educação, Magda Soares rebate as críticas feitas pelo novo secretário, fala sobre os desafios do País frente à agenda da alfabetização e afirma que defender o método fônico como alternativa para a agenda é uma atitude “simplista e ignorante”.

“O que ocorre nesse País inteiro é a predominância de escolas públicas com infraestrutura muito insatisfatória, com professores mal formados, salários miseráveis. Pensar que se resolve a alfabetização com o método fônico, é um simplismo, uma ingenuidade, uma ignorância, que me deixa indignada”. Confira a entrevista.

Carta Educação: O que é alfabetizar?
Magda Soares: É ensinar a criança o sistema alfabético de escrita, a ler e a escrever, que significa levá-la a se apropriar de um sistema de representação dos sons da língua, da fala, em grafemas, sinais e símbolos. É aprender uma tecnologia, fruto de uma invenção cultural que, ao contrário da fala, que a criança adquire naturalmente, tem que ser aprendida porque é um sistema de representação de sons da fala em sinais.

CE: O que é letrar?
MS: O letramento tem relação com a alfabetização, mas é diferente. Não basta a pessoa só aprender a ler e a escrever. Quando ouvimos que uma criança sabe ler e escrever, precisamos saber: ela sabe tirar consequências, escrever um texto que tenha coesão, coerência, que seja adequado ao destinatário? Para aprender isso, não é só com a alfabetização, mas em contato com outros procedimentos e métodos que receberam o nome de letramento, conceito incorporado nos anos 1980 exatamente para destacar a importância não só da criança aprender a ler e a escrever, mas também aprender a fazer uso da leitura e da escrita nas demandas sociais.

CE: O secretário de Alfabetização do MEC, Carlos Nadalim, declarou em um vídeo que o letramento é o grande vilão da alfabetização. Como você avalia essa colocação?
MS: Ele se mostra completamente ignorante na questão da alfabetização e letramento, faz uma grande confusão, não distingue como acabei de fazer o que é uma coisa e outra. Ele diz que o letramento é o vilão como se você só tivesse que ensinar a criança a ler e a escrever e não tivesse que, contemporaneamente, fazer isso vivenciando o seu uso social. Isso foi uma reação aos métodos artificiais criados para alfabetizar as crianças, como as cartilhas do “Eva viu a uva”. O letramento não é vilão, é um parceiro da alfabetização, são componentes indissociáveis da aprendizagem da língua escrita pela criança.

CE: O secretário também afirma que o letramento “é uma reinvenção construtivista da alfabetização” e o atrela a uma “preocupação exagerada com a construção de uma sociedade igualitária, democrática e pluralista em formar leitores críticos”…
MS: Aí ele faz outra confusão de letramento com construtivismo. Não tem a menor lógica. O construtivismo não é um método de ensino, é uma teoria de aprendizagem da área da psicologia cognitiva que se aplica não só à língua, mas a qualquer outro conteúdo. A origem está em Piaget, que desenvolveu uma pesquisa para entender como a criança vai formando conceitos, tomando como base fatos matemáticos e científicos. A Emília Ferreiro resolveu fazer uma pesquisa nessa mesma linha, mas tomando como objeto de estudo a língua escrita. Piaget mostrou que a criança vai construindo progressivamente o seu conceito de objetos e processos culturais, a isso foi dado o nome construtivismo. Isso se aplica a qualquer disciplina, não é um método de alfabetização, é um processo de aprendizagem que a Psicologia estuda.

O construtivismo chegou ao Brasil sobretudo pela obra e pela ação da Emília Ferreiro e entendeu-se que ela estava sugerindo um método construtivista de alfabetização, coisa que ela mesma rejeitava com firmeza. Ela não propunha um método, mostrava como a criança ia construindo o conceito do que é a língua escrita.

O que o construtivismo trouxe para nós é que a criança aprende progressivamente conceitos culturais e isso acontece em todas as áreas, até para amarrar o sapato há essa construção. E aprender a ler e a escrever é mais ou menos isso, a professora orienta a criança a como construir. Resumindo, são coisas diferentes, letramento, alfabetização e construtivismo. Nadalim faz uma verdadeira salada disso, que mostra a sua falta de clareza entre teorias, aprendizagem do princípio alfabético e uso social da língua escrita.

CE: O secretário também defende o método fônico como uma metodologia capaz de superar o analfabetismo funcional. Como avalia essa afirmação?
MS: A questão é que, para a criança aprender a língua escrita, ela precisa aprender as relações entre os fonemas e as letras. Se a língua escrita é a representação da língua oral, você tem que aprender como ocorre essa representação, como os sons são representados por letras e grafemas. O processo de alfabetização inclui e tem que incluir forçosamente a aprendizagem pela criança das relações fonemas e grafemas, mas não é só isso. Tem muita coisa que antecede esse momento em que a criança se sente capaz de entender essas relações.

Aí é que entra o processo de construção do conceito de língua escrita pela criança. Ela demora a perceber, por exemplo, que quando escreve, está escrevendo o som, e não representando o objeto. Tanto que é comum que, ao pedir para uma criança de três anos escrever a palavra casa, ela desenhe a casa. Esse salto é fundamental, mas um tanto abstrato para as crianças.

O grande erro do chamado método fônico é que ele parte de um princípio linguisticamente equivocado, porque o fonema não se pronuncia, os consonantais, você não pronuncia um t, d, m sem se apoiar numa vogal ou semivogal. Então essa é questão do método fônico, ele parte com a criança de um momento em que ela não está suficientemente desenvolvida cognitivamente e linguisticamente para conseguir entender as relações entre fonemas e grafemas. É preciso que ela chegue nesse momento, e aí temos uma questão de interação entre desenvolvimento e aprendizagem, até que a criança consiga identificar que, numa sílaba, você tem mais de um som e que cada um deles é representado por uma letra.

A questão não é ser contra o método fônico, mas considerar que ele não dá conta do processo de alfabetização. Trata-se de um procedimento necessário, indispensável, usado no momento em que a criança está pronta cognitivamente e linguisticamente para fazer as relações do fonema com a letra.

CE: Existe um único método para alfabetizar?
MS: No livro “Alfabetização, a questão dos métodos” que eu escrevi o ano passado [a obra ganhou o primeiro lugar na categoria Educação do prêmio Jabuti, concedido pela Câmara Brasileira do Livro], eu exponho as facetas do processo de aprendizagem da língua escrita pela criança, linguística, socio-linguística, psicológicas, para que se entenda que alfabetização não é uma questão de método., não se trata de escolher um método.

A questão é alfabetizar o método, que implica em conhecer o processo de desenvolvimento cognitivo-linguístico da criança, orientando-o até que ela compreenda o princípio alfabético.

CE: No livro Linguagem e escola, uma perspectiva social, você relaciona linguagem, escola e sociedade. Do que se trata?
MS: Eu explico que o processo de alfabetização e letramento depende muito do contexto social e cultural da criança. Nesse país terrivelmente desigual, temos que levar em consideração que as crianças das camadas populares, que estão nas escolas públicas. Com elas, o trabalho tem que ser ainda mais amplo e significativo, porque muitas vezes as escolas têm que fazer por elas o que as famílias não têm condições de fazer, por também não terem recebido o que precisavam.

O Nadalim, por exemplo, tem experiência em escola particular, certamente para a classe média, média alta. É diferente você pegar uma criança para alfabetizar que, em geral, já fez pré-escola, tem livros em casa, ou pais que já começaram a ensinar a letra do nome. É muito diferente das crianças das camadas populares, a enorme maioria desse País.

O que ocorre nesse país inteiro é a predominância de escolas públicas, com infraestrutura muito insatisfatória, com professores mal formados, com salários miseráveis, e ele pensando que resolve a alfabetização com o método fônico…É um simplismo, uma ingenuidade, uma ignorância, que me deixa indignada.

CE: Qual o cenário brasileiro frente à agenda do analfabetismo funcional?
MS: O Indicador de Analfabetismo Funcional (Inaf) mostra que há uma parcela da população que, embora alfabetizada, ou seja, saiba ler e escrever, não se letrou, não aprendeu a interpretar o que lê, a inferir sobre o que lê, a fazer avaliação crítica e nem a escrever. [dados do Inaf apontam que, em 2018, 3 em cada 10 brasileiros eram analfabetos funcionais.] Isso deve piorar se insistirmos na ideia de que o letramento é o vilão da alfabetização.

CE: Quais são as políticas fundamentais para reverter o quadro?
MS: A política fundamental e indispensável é a formação de professores. Nós não temos professores formados para alfabetizar. O curso de pedagogia, que forma para a educação infantil e séries iniciais, não ensina praticamente nada sobre como alfabetizar, qual é o processo da criança para aprender a ler e a escrever. Não há nenhum elemento de linguística ou psicolinguísticas nos cursos de pedagogia. São professores que saem sem saber o que fazer em sala de aula, sobretudo com as crianças das camadas populares.

A primeira providência seria mudar o formato dos cursos de Pedagogia ou criar um curso de formação para professores das séries iniciais. Apesar de ser esse o objetivo dos cursos de Pedagogia, não é isso que eles têm feito. É necessário aprender sobre a psicogênese da língua escrita, ou seja, como a criança vai evoluindo no seu conceito de língua escrita e que intervenções podem ou devem ser feitas para que ela avance mais rapidamente e com mais eficiência.

Na alfabetização estão envolvidos processos cognitivos de compreensão de objetos culturais, a linguística, ou seja hoje se ensina um objeto, no caso o sistema alfabético, que os próprios professores desconhecem.