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Para dar conta da diversidade do discurso

Por Nelson Barros da Costa, Maria das Dores Mendes e José Wesley Matos

Estudos do texto e do discurso é uma etiqueta bastante ampla que recobre perspectivas diversas de grupos e autores que divergem e apresentam uma maneira própria de interpretar os fenômenos linguageiros. Apesar dessa diversidade teórica, há alguns consensos ou convergências a respeito de aspectos importantes dos objetos das ciências da linguagem. Um desses pontos de encontro é a noção de gênero do discurso, que se tornou central para muitas perspectivas a partir da divulgação e incorporação dos trabalhos do Círculo de Bakhtin. “Comunicamo-nos por meio dos gêneros do discurso” tornou-se uma espécie de máxima teórica validada em muitas correntes pela proficuidade da noção que, ao delinear-se em cada quadro como conceito, possibilita explicações que recobrem muitos dados das práticas textual-discursivas. Desse modo, mesmo quando o pesquisador recorta um ou outro aspecto do objeto, ele precisa ser correlacionado ao gênero discursivo na intenção de melhor compreender os processos de construção dos sentidos.

A Análise do Discurso é uma dessas disciplinas que promove a expansão do conceito de gênero discursivo, seja nos materiais do ensino básico, nos cursos de graduação em Letras ou nas pesquisas de Pós-Graduação. Dominique Maingueneau é um analista do discurso francês bastante reconhecido, entre outras propostas, por sua formulação da noção de gênero como uma cena enunciativa. Contudo, fabricando uma perspectiva particular atenta ao funcionamento dos enunciados, o autor vem apresentando outros quadros teóricos para explicar fenômenos que se adequam mal à noção de gênero. Um desses projetos (talvez um dos maiores, mas não tão difundido) trata das “frases sem texto”. É fácil recuperar na memória situações em que algum artista explica à mídia que uma frase sua foi retirada de contexto ao ser recortada. Estamos cercados dessas “pequenas frases” que circulam nos jornais e nos meios digitais. Esse tipo de dado parece, para o autor, funcionar tal como o slogan, o adágio e o provérbio. Poderíamos, no entanto, chamar e tratar esses tipos de enunciados como gêneros?

Para dar conta da diversidade do discurso

Bakhtin advogava com ênfase que os gêneros têm uma relação indissociável com as esferas de comunicação. Eles conferem estatuto pragmático a determinadas palavras e permitem reconhecer que elas circulam em certa esfera e de determinado modo. Porém, no caso dos textos na Web, ainda se mantém esse quadro que faz os enunciados se diferenciarem pelo crivo do gênero?

Pensemos em outra série de problemas derivados de fenômenos “anômalos” aos quadros teóricos existentes em AD: Que tipo de interação estabelecemos com as máquinas que falam conosco através das telas e de mensagens de voz? Que ferramentas temos para lidar com as crescentes comunicações com outros animais? Como trataremos alguns enunciados que se associam a materialidades diversas e constroem seu sentido a partir dessa apropriação mútua? Para quem são dirigidos alguns enunciados falados coletivamente, como uma oração em uma igreja ou um cântico de uma torcida de futebol? Há um destinatário?

Essa é apenas uma pequena demonstração daquilo que Maingueneau vem percebendo há alguns anos: que o universo do discurso é extremamente heterogêneo em suas manifestações. Essa metáfora do universo é bastante curiosa. Na Física, defende-se que, em qualquer direção, o universo é homogêneo e isotrópico, ou seja, as leis (que o explicam) se aplicam de modo igual em qualquer lugar. Ora, neste novo livro de Dominique Maingueneau, As margens do discurso, lançado pela Editora Contexto, encontramos o completo oposto em relação ao universo discursivo. Além dos fenômenos mencionados acima, outros ainda vêm se somar ao apelo à necessidade de adaptação e de formulação de novos conceitos que atendam às especificidades dos enunciados, sem forçá-los, a priori, na caixa de ferramentas teóricas já estabelecida e calcada em um modelo de comunicação prototípico dos textos produzidos no passado.

Desenvolvendo a metáfora fluvial latente na palavra “dis-curso” (um rio que segue em várias direções), as margens enfatizadas no título são as zonas (conceitos e corpora) não navegadas, relegadas ao esquecimento pelas ferramentas dos estudos do discurso. Para dar ainda mais um “gostinho” aos interessados nesses novos fenômenos explorados no livro, destacamos mais algumas situações:

  • Maingueneau já defendeu que a filosofia funciona como um campo discursivo. Porém, será que todos os atores desse campo são filósofos? Como se constitui esse reconhecimento? Como podemos entender esse fenômeno contemporâneo de “filósofos da internet”, que são vistos como pensadores “menores”/ de divulgação?
  • Nas lutas sociais, é comum analisarmos a fala dos oprimidos. Porém, é também rotineiro constatar que esses também são desfavorecidos de lugares de fala com autoridade e visibilidade. Surgem então aqueles que, sem pertencerem aos grupos excluídos, reivindicam ou ganham um estatuto de porta-voz. Como tratar esses locutores que falam em nome de outros e para outros?
  • Na Web, é corriqueiro encontrarmos polêmicas em textos de especialistas seguidos de comentários de pessoas “comuns”. Cientistas, por exemplo, são contestados por internautas que afirmam que a validade dos argumentos desse locutor deriva do monopólio das instituições. Como podemos analisar coerentemente o conflito entre as produções institucionalizadas (regradas por gêneros e campos) e os enunciados aparentemente “sem amarras” de locutores populares em profusão na Web?

Acreditamos que, se essas questões já são bastante relevantes e atrativas para os praticantes da Análise do Discurso, qualquer pessoa com interesse nesses novos fenômenos, normalmente vistos apenas como “sociais”, ganhará com este livro um conjunto de novas lentes para a observação aguçada do mundo pela ótica do discurso.

Os organizadores.


Nelson Barros da Costa é professor titular do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal do Ceará (UFC). Doutor em Linguística Aplicada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), fundador e vice-líder do grupo de pesquisa Discurso, Cotidiano e Práticas Culturais – Grupo Discuta.

Maria das Dores Mendes é professora adjunta do Departamento de Letras Vernáculas e do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal do Ceará (UFC). Doutora e mestra em Linguística por essa mesma universidade, é líder do grupo de pesquisa Discurso, Cotidiano e Práticas Culturais – Grupo Discuta.

José Wesley Matos é doutorando em Estudos Linguísticos pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Mestre em Linguística pela Universidade Federal do Ceará (UFC), é membro do grupo de pesquisa Discurso, Cotidiano e Práticas Culturais (Grupo Discuta) e do Núcleo de Estudos em Análise do Discurso e Ethos – NEADE (UNIR/ UFMT).

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