NA PRIMEIRA PARTE da anedota que ouvi, o passageiro de um trem lembrava ao companheiro, dorminhoco, que “O sono é o crepúsculo da morte”. Atribuía a constatação a ninguém menos que o senhor William Shakespeare. O teatrólogo e escritor era apresentado, então, no papel de desmancha-prazeres.
Não é assim. No sono, viajamos. Visitamos países sobre os quais nada nos contaram. Na volta, a bagagem é composta por imagens, por vezes imperfeitas, de uma realidade perdida no tempo e no espaço. Ou inexistente desde o surgimento do universo.
Sem dó, nem piedade, David Murray lembra que o sono é o que nos diferencia do Criador, que nos concede esse presente, junto a outros, como o alimento e o oxigênio. Além de ser um ato de rebeldia, não dormir é, também, uma forma de nos “descriar”. Para ele, o sono é um dom, muito mais do que um mal necessário, que nos afasta do computador e do celular. John Baillie, por sua vez, escreve um ensaio, “A Teologia do sono”, inteiramente dedicado à mensagem contida no versículo 4 do Salmo 121.
Reconheço que não sou bom na arte de dormir. Em geral, minhas noites começam mal e terminam capengando. Quando o despertador me convida a acordar, minha cabeça dá um rodopio. Atropela a grade de proteção e, irresponsável, faz o retorno. Pilotando, ali está o sono, dado a cometer infrações.
Analisado sob a ótica de certa linha teológica, por conta dessa dificuldade de relacionamento com a cama, não tenho agradado muito a Deus nesse pormenor. A propósito disso, sou informado de que ao me recusar a sair do estado permanente de vigília, estou dizendo ao Criador que não confio nele o bastante para deixar a criação sob os seus cuidados. Melhor eu ficar esperto, portanto.
Ao dormir, eu estaria aceitando o meu papel de criatura e reconhecendo a soberania do Criador. Render-me-ia ao fato de que Deus não precisa de mim, que posso me dispensar por algumas horas. Assumiria que não tenho o controle do mundo, longe de girar em torno do meu pobre umbigo. O que vale também para pessoas como o presidente dos Estados Unidos e o papa. Eles podem, sem cerimônia, vestir o pijama, fechar os olhos e ir direto para o outro dia. A superpotência é outra, que ninguém se engane. Nem eles.
Mais do que as implicações teológicas, o sono é sagrado. “Sabe quando dizemos que uma pessoa precisa comer, porque saco vazio não para em pé? Com o sono é igual. Tem-se a ideia de que dormir é perda de tempo, mas para se ter bom desempenho no trabalho, é preciso dormir”, diz a neurologista do Instituto do Sono, Dalva Poyares, tentando nos acordar para essa verdade. Para ela, a falta de sono pode criar doenças cardiovasculares, além de alimentar a tendência de engordar.
Não sei fazer isso, mas quem pode tirar uma soneca, durante o expediente, de meia horinha apenas, só tem a ganhar. Para o neurologista Samir Magalhães, do Hospital Albert Einstein, “o sono é um estado fisiológico reparador do cérebro, além de funcionar como um período de limpeza de substâncias acumuladas, como a adenosina, que provoca sonolência.”
Meu distúrbio, acredito, tem proporções que não chegam a ser alarmantes. Compromete pouco, ou quase nada, a qualidade do meu tempo de trabalho. Sou teimoso. Mas eu bem que poderia ter mais tempo de cama, uma carga horária mais densa. Para todos os efeitos, alego que o celebrado cardeal Dom Hélder Câmara, em vias de ser beatificado, dormia no máximo 3 horas por dia.
Pior é aquela retratada em Antes de dormir, de S. J. Watson, livro publicado no Brasil pela Editora Record e adaptado para o cinema, com Nicole Kidman, Colin Firth e Mark Strong no elenco. E isso me dá a esperança de que nem tudo está perdido, que ainda posso despontar como sobrevivente e retornar como herói dessa jornada, pronto para contribuir com aqueles que ficaram.
Na trama de Antes de dormir, Christine Lucas acorda, todas as manhãs, com seus hábitos inalterados. Sem saber ao certo quem é, levanta-se da cama e, no banheiro, não se reconhece. Afinal, ela já não tem lembranças. Dia após dia, como um Sísifo, o homem que dorme com ela precisa contar que se chama Ben, é seu marido e que um acidente a deixou nessa condição, da qual não consegue sair, nem sabe como lidar.
Desolada, a protagonista confessa: “É como morrer todos os dias. Sem parar… Preciso melhorar. Não consigo me imaginar seguindo desse jeito por muito tempo. Eu sei que vou dormir esta noite e que amanhã irei acordar novamente sem saber de nada, e o mesmo no dia seguinte, e no dia depois dele, para sempre. Não consigo imaginar isso. Não consigo enfrentar isso. Isso não é vida, é apenas uma existência, saltar de um momento para outro sem ter ideia do passado, nem planos para o futuro. É como penso que deve ser a vida dos animais. O pior é que eu nem mesmo sei o que eu não sei. Pode haver muitas coisas aguardando para me ferir. Coisas sobre as quais jamais sonhei.”
Hoje, ao me deitar, não direi a mim mesmo que fui dormir. Meu compromisso será com o propósito de agradar a Deus e ser ainda melhor, no dia seguinte, para o próximo, a começar por mim mesmo. Sabendo quem eu sou, de onde penso que vim e para onde acredito que vou.
Boa noite. O dia foi cheio e essa nova noite promete. Amanhã tem mais. Muito mais.
RUBENS MARCHIONI é palestrante, publicitário, jornalista e escritor. Eleito Professor do Ano no curso de pós-graduação em Propaganda da Faap. Autor de Criatividade e redação, A conquista e Escrita criativa. Da ideia ao texto. [email protected] — https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao