O tempo é uma coisa curiosa. Para marcá-lo, registrá-lo, consumá-lo, inventamos aparelhos implacáveis que se impõem a nós e, não raro, nos fazem servos de nossas próprias invenções. Relógios e calendários nos dominam de tal forma que dão a impressão de que há um tempo comum a todos nós. Ledo engano. O tempo não é único para todas as pessoas, nem é vivido da mesma maneira em todas as sociedades.
É por isso que os historiadores, profissionais profundamente reverentes ao tempo e senhores de sua marcação, tratam esses aparelhos com certo desrespeito e até mesmo com desdém. E eles fazem isso por uma boa razão: o tempo dos calendários é sempre um tempo imperfeito. O cálculo frio da passagem de um tempo absoluto não toca naquilo que importa na escrita da História: os homens, seus pensamentos, suas ações e inações, suas obras e seus grupos. E os homens e os processos nos quais eles se envolvem não respeitam as fronteiras frias marcadas pelos meses, anos e séculos. As coisas da vida, teimosamente, começam e acabam antes ou depois do momento que os calendários admitiriam ser o certo. De fato, é observando continuidades e descontinuidades das coisas humanas que os historiadores definem os tempos, recortam as épocas, traduzem as eras.
Como qualquer outro século, ou época, também o “século XIX” está sujeito aos sabores das avaliações feitas por historiadores com visões distintas, e isso impacta na definição de seus limites. Há os que consideram que ele tem 125 anos (1789-1914); há os que pensam que ele abarca 100 anos (1815-1914) ou menos. Em todos esses casos, existem boas razões para tomar determinados eventos – como o início da Revolução Francesa ou o começo da Primeira Guerra Mundial… – como marcadores de tempo, que fecham e abrem períodos. Este livro considera o “XIX” um “século longo”, e faz isso levando em conta que a história que vai ser contada aqui é uma História europeia. Portanto, é uma História do tempo de um lugar. Evitamos, assim, enredados nas malhas de um mal disfarçado eurocentrismo, cair na tentação de supor qualquer universalidade para aquilo que é chamado de “contemporâneo”. Os marcadores usuais de uma “História do século XIX” incluem necessariamente a Revolução Francesa, o Congresso de Viena, a Revolução de 1848, a Primeira Guerra Mundial, além de vários outros. E ainda que eles sejam marcadores exclusivamente europeus, não é incomum que encontremos histórias que são contadas como se eles valessem como pontos de mudança para todo o mundo. E isso simplesmente não é verdade: outras sociedades têm seus próprios tempos, distintos ou muito distintos daqueles da História europeia.
Porém, considerar que os marcos da História europeia não podem ser transpostos para outros lugares não significa dizer que as coisas europeias não nos dizem respeito. Com o século XIX, a Europa se espalha pelo mundo como nunca antes: seus navios, emigrantes, mercadorias e armas levam junto deles valores, ideias, instituições e práticas. Nessa época, o espaço europeu se ampliou de forma tão brutal e rápida que se começou a falar, com alguma propriedade, da europeização do mundo. É por isso que, mesmo escrita a partir de contextos e processos exclusivamente europeus, a História contada neste livro trata de temas que nos tocam.
Além disso, este livro não fala de tudo, e nem poderia. Ele seleciona fatias deste bolo que é o “século XIX” europeu. E as seleciona tanto por sua significação para os contemporâneos quanto pela longevidade de seus efeitos, muitos dos quais nos afetam ainda hoje.
O que parece ser decisivo para descrever esse “século” é a quantidade inédita de mudanças ocorridas em uma velocidade jamais vista. Não que o mundo europeu de 1914 fosse absolutamente diferente daquele de 1789. Não era. Muitas feições da Europa de 1789 ainda eram largamente visíveis em 1914. Mesmo assim, nunca antes tantas novidades haviam surgido no mundo tão rapidamente sem que boa parte das pessoas estivesse preparada para as mudanças que provocaram: o voto universal, a perda de espaço social do pensamento religioso, a eletricidade, o telégrafo, o zepelim, a onipresença das locomotivas, o movimento operário, o pensamento nacionalista, entre muitas outras. E mais que isso, as próprias sociedades europeias (em especial no espaço urbano) mudaram também. Alguém que tivesse vivido em Berlim em 1500 certamente teria se sentido em um ambiente familiar na Berlim de 1800. Mas aquele que viu a Berlim de 1800 quase certamente não a teria reconhecido em 1890. Muitos dos contemporâneos desse tempo de mudanças ficaram animados, outros tantos, assustados ou angustiados com elas.
Foram as novidades que fizeram com que muitos buscassem outras e com que alguns recusassem toda e qualquer inovação; esse é o século que viu surgir movimentos políticos em torno da democracia e do socialismo que disputaram espaço com movimentos tão jovens quanto eles, que buscavam simplesmente conservar ou recuperar o que era antes.
Este livro nem respeita de forma estrita e nem desrespeita de forma absoluta a cronologia. Ele começa com a Revolução Francesa e termina pouco antes da Primeira Guerra Mundial, mas idas e vindas são sempre inevitáveis, porque o tempo das coisas humanas é rebelde: ele não segue calendários, tampouco se deixa enquadrar em capítulos de livros. Ainda que tentemos…