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O refúgio | Rubens Marchioni

Na estrada movimentada daquela quarta-feira, havia um acidente, nada grave, ele apenas tornava o trânsito mais calmo em determinado trecho – só assim mesmo! O sítio onde Renato foi conhecer uma plantação de orquídeas estava, agora, a 56 km de distância. Ele o conhecia apenas da internet, em imagens muito bem produzidas.

A proprietária era Adelaide, uma senhora educada e gentil, que esbanjava saúde num corpo e mente que nada testemunhavam sobre a sua idade cronológica.

Renato chegou e logo foi atendido.

– A senhora é a dona da propriedade, certo?
– Sim, eu gosto disso aqui – ela disse, pausadamente, abraçando tudo com os olhos, como mãe diante do berço. – Meu marido e eu…, a gente cuidou de cada pedacinho!

Renato esperou um pouco, em silêncio, como se não quisesse deixar o tempo passar.

– Adelaide, me conta, a senhora e o seu marido… – disse Renato
– Sim, até dois anos atrás era o meu marido que tocava o negócio. Herança do pai.

Em seguida, olhou um pouco pelo retrovisor do tempo e reuniu algumas imagens, algumas experiências que ficaram marcadas para sempre em sua memória. Aquelas imagens renderiam um documentário aplaudido pelo público e pela crítica.  

O refúgio | Rubens Marchioni

Tudo ia muito bem com o empreendimento do sogro, tarefa dividida com o filho, os detalhes cuidados como numa microcirurgia. Mas veio o tempo em que chegou uma praga, tão necessária quanto uma boa dor de dente. Sem pedir licença, ela quase dizimou toda a plantação de flores. Por pouco os esforços do casal não se transformaram em cinzas, como aconteceu com grande parte das plantas que já se preparavam para se transformar em flores e, depois, em dinheiro que abasteceria a família e atenderia às demandas da propriedade. Em meio a isso, eles ainda aprendiam, na prática, o que era a vida de casados, descobrindo suas agruras e delícias.

Mas conseguiram superar esse momento difícil arquitetando soluções criativas. A visita de um agrônomo funcionou como um grande farol capaz de trazer de volta a possibilidade de crescimento da plantação devastada. No sítio colhiam flores; no mercado vendiam beleza e aroma. Para casa, traziam dinheiro, parte dele reinvestido ali mesmo.     

Renato ficou interessado no sobrenome do proprietário, que parecia conhecer de algum lugar.

– Fiquei curioso. Me fala mais sobre seu marido. Esse sobrenome não me é estranho. Espera, eu vou lembrar – disse Renato.

A cada nova informação, ficava claro se tratar de um homem que já havia frequentado a política, mas antes fizera carreira na Engenharia Naval, ora na obra, ora na sala de aula de uma universidade que figurava entre as melhores do país.

– Adelaide, eu me lembrei. Olha que incrível: seu marido foi meu professor de Álgebra Linear no curso de Engenharia. Competente e linha dura! Aprendi com ele a moda de usar bigode e fumar cachimbo – acrescentou, com um sorriso.

– Não acredito! Então você foi aluno do meu marido? Vamos entrar, Renato, vamos entrar. Sabe, eu gosto de pilotar eu mesma a cozinha, as empregadas cuidam do resto – confessou. – Vamos lá, vou preparar um café.

A casa transpirava orquídeas, sua melhor maquiagem. Elas estavam presentes em toda a decoração, integrando a residência feita de traços coloniais com a grande área do sítio coberta de flores. Para quem olhasse em determinado ângulo, quando as portas e janelas estivessem abertas, era como se um sofisticado programa de computador tivesse feito aquela mixagem, com efeitos especiais. Bastaria um clic, e uma foto com jeito de paraíso terrestre estaria diante dos olhos. Ou o olhar de um escritor para iniciar uma nova obra de fôlego.

Toda a decoração da casa havia sido pensada por Adelaide, sempre com 92% de aprovação de Getúlio, que depois se encantava com o restante. Adelaide era impulsiva, queria fazer tudo pra agora; Getúlio, mais cauteloso, pedia um tempo, queria pensar melhor. No final das contas, todas as contas acabavam fechadas.

Mas agora Adelaide queria descansar, estava certa de já ter caminhado com aquela propriedade até onde era possível para ela. Sobretudo em se tratando da plantação de orquídeas, uma flor que exige cuidados adicionais durante a plantação, cultivo, colheita e no transporte para os grandes centros urbanos.

– A senhora falou em descansar. O que exatamente pensa em fazer? – disse Renato, trazendo toda a atenção de Adelaide para perto dele. – Uma aposentadoria, talvez? A terceirização do negócio? Ou a venda da propriedade?

– No momento eu ainda não sei responder com clareza, Renato. Ainda não pensei em detalhes. Estou naquela fase de ouvir opiniões, instruções, coisas assim.

E prosseguiu.

– Mas tem o coração… – disse, pensativa, garimpando até as pequenas razões para isso.

O coração entrava em todas as conversas, democráticas, mas ele desejava monopolizar, dar a palavra final. Acontece que a conta bancária e os desafios do futuro não perdiam uma oportunidade de mostrar o seu peso em situações como essas.

Sobre o nariz fino, os olhos brilhantes de Renato brilharam ainda mais. Ele viu aí uma chance de realizar um antigo sonho: deixar os escritórios, os assentos de aviões, os hotéis internacionais, as reuniões, contratos, aeroportos, restaurantes, vai, volta, embarca, desembarca, arruma as malas, desarruma as malas, “espero que minha esposa entenda que o Dia dos Namorados pode ser qualquer dia que a gente quiser, que no hospital a equipe médica vai cuidar de tudo quando o bebê chegar” – essas coisas tão difíceis de administrar e de explicar. Deixou escapar seu interesse pelo sítio.

Adelaide desejou saber qual seria a proposta de Renato no caso de uma eventual terceirização da propriedade. Será que ele assumiria tudo, mantendo o pomar, a criação de pequenos animais e a plantação de café de que o marido de Adelaide nunca abriu mão? Ou assumiria apenas a plantação e cultivo de orquídeas, o carro-chefe?

– Preciso amadurecer a ideia. Mas em princípio eu assumiria tudo, sem alterar nada, só aumentando a produção – disse Renato. Em casa, ele falaria com a esposa, muito habituada à vida urbana da cidade grande e todas as possibilidades que ela oferece, embora em alguns momentos, fatos isolados, deixasse escapar pequenos sinais de cansaço e desejo de mudança.

Thereza interessou-se pelo assunto, mas seu desconforto crônico diante de multidões ainda estava longe de fazer com que ela procurasse o recolhimento de um sítio. Nas palavras e nos gestos, era possível perceber certa dose de entusiasmo disfarçado com a ideia. No entanto, isso durou até a página dois, quando a conversa entrou naquela parte em que Renato revelou seu desejo de se transferir definitivamente para o sítio. Inclusive porque, do ponto de vista prático, gerir aquela propriedade a distância lhe parecia algo impraticável, seria o passaporte para o fracasso completo desde o início.

O assunto foi temporariamente arquivado. Mas Adelaide soube esperar pelo dia em que finalmente colocaria aquela obra nas mãos de Renato e Thereza, que iniciaram o trabalho pela ampliação da casa, mantendo os antigos traços arquitetônicos. Estava no contrato.


Rubens Marchioni é palestrante, produtor de conteúdo e escritor. Autor de livros como A conquista Escrita criativa. Da ideia ao texto[email protected]. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao

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