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O que aconteceu com o Brasil em 31 de março de 1964?

brasileiros_1964

Por Marcos Napolitano*
(
publicado na Revista Brasileiros, edição 80 – março de 2014)

 

Para responder esta pergunta, aparentemente simples e desnecessária, dada a notoriedade dos fatos, farei três afirmações aparentemente simples, mas necessárias. Necessárias, tendo em vista que o núcleo dos acontecimentos, aqueles que escondem o DNA dos processos históricos, parece estar soterrado pelas camadas do tempo que constituem a paisagem da memória. Tudo bem que já não há uma única verdade histórica fossilizada a ser desenterrada nesta escavação das camadas de memória. Por outro lado, paradoxalmente, elas podem esconder muitas mentiras e ilusões.   

Pois bem, vamos às três afirmações:

– Em 1964 houve um golpe de Estado.
– Este golpe de Estado foi organizado e protagonizado pela direita.
– O regime político que se seguiu ao golpe foi um regime militar.

Dizer que em 1964 houve um golpe de Estado, implica afirmar que não houve uma revolução ou um contragolpe, como se disse à época. Não houve “revolução” nem no sentido que a palavra adquiriu no vocabulário político ocidental desde a grande Revolução Francesa, que fez avançar direitos malgré la guillotine. Nem no sentido astronômico do termo, que explica o movimento cíclico dos astros de volta ao seu ponto de partida, ou à sua “origem”, se preferirmos. Sejamos justos com as intenções: os militares que deram o golpe não queriam ir pra trás na História. Ao contrário, eles queriam ir “pra frente”, tal como imortalizado pelo jingle da Copa do Mundo de 1970. Mas o “pra frente Brasil” dos militares não significava uma ruptura revolucionária efetiva, com mais direitos sociais ou direitos políticos para os brasileiros, e sim desenvolvimento econômico e integração nacional. Na ótica militar, o resto viria por si.

CAPA 1964_WEBA tese do “golpe preventivo” ou do contragolpe face às ousadias da “subversão” e do “desgoverno” que conturbava o Brasil na ótica conservadora, tampouco se sustenta. A direita civil e militar se assanhava para derrubar os governos eleitos desde que Getúlio Vargas – que não tinha nada de aventureiro ou comunista – voltou ao poder pelo voto popular. O fato é que os setores conservadores e mesmo as instituições políticas e jurídicas sempre tiveram dificuldades de lidar com a frágil experiência democrático-eleitoral brasileira que se seguiu à queda do Estado Novo em 1945. Isso nos conduz à segunda afirmação: o golpe de 1964 foi uma ação da direita.

Esta verdade aparentemente cristalina corre risco diante das interpretações ora correntes que carregam no peso da responsabilidade das lideranças e movimentos políticos de esquerda, e seu “populismo irresponsável”, pela deterioração do ambiente político que culminou no golpe. Lembremos que o que havia de mais radical na esquerda da época, ao menos com capacidade de movimentar o quadro político e social, era o brizolismo, cuja grande bandeira era a convocação de uma assembleia constituinte para reformar a Constituição de 1946. O motivo era que a Carta Magna em questão não deixava analfabetos votarem, e impedia, virtualmente, uma reforma agrária viabilizada pela ação do Estado. Com certa boa vontade, poderíamos traduzir essa palavra-de-ordem como a tentativa de fazer com que as instituições brasileiras incorporassem as demandas sociais, sem que isso significasse uma anomia completa causada pela ruptura entre a sociedade e suas instituições. Deixo o leitor à vontade para decidir, mas devo assumir que no meu planeta ideológico há uma boa distância entre convocar assembleias constituintes e patrocinar golpes de Estado.

A pergunta que deve ser feita para se compreender 1964 é porque um projeto que, no fundo, queria um Brasil com mais proprietários e votantes causou tanta desestabilização geral na vida política. Ora, isso não passava de um plano insidioso de comunistas para tomar o poder, diriam os simpatizantes do golpe ainda presos aos marcos da Guerra Fria. Entretanto, nunca saberemos se o velho PCB, que apoiava as reformas de João Goulart, iria crescer e transformar o Brasil em um imenso satélite soviético ou apenas legalizar-se e ser uma força eleitoral importante, mas secundaria. O fato é que o reformismo no Terceiro Mundo, ainda que moderado, tal como as “Reformas de Base” de Goulart, não conseguiram se viabilizar historicamente. A luta para conciliar desenvolvimento econômico com alguma justiça social e plena cidadania ainda é a pedra filosofal que estamos tentando atingir. O problema é que há cada vez menos alquimistas na política brasileira.

A verdade sobre quem foram os verdadeiros protagonistas do golpe corre mais risco ainda quando chancela a improvável tese de que o Presidente Goulart tramava um autogolpe que dissolveria o Congresso e suspenderia as eleições de 1965, instaurando uma “república sindicalista” da qual não existe a mais remota evidência documental. Em minha opinião, Goulart estava mais para a tradição getulista, um pouco mais à esquerda sem dúvida, do que para um peronismo tropical. Isso significava priorizar o Estado como mediador de conflitos e promotor de reformas dentro da ordem institucional, e não apostar na relação direta com as massas.

Obviamente, não se trata de apagar os erros políticos da(s) esquerda(s) no processo histórico: sua tradicional jactância retórica, seu sectarismo crônico e suas análises por vezes muito esquemáticas da realidade. No xadrez da complicada política brasileira da “República de 46”, os movimentos errados da esquerda podem até ter facilitado o caminho dos golpistas. Mas o xeque mate foi da direita. Arrisco dizer, retomando a tese do saudoso Rene Dreifuss, que a partir de 1961, com a fundação do IPES – Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais, o golpismo de direita ganhou ossatura  e cérebro. Em outras palavras, tornou-se capaz de ir além de meras aventuras, e conseguiu articular melhor seus movimentos e construir projetos políticos estratégicos. Isso nos remete à minha terceira afirmação: o regime político produzido deste projeto, que se seguiu ao 31 de março, foi um regime militar.

Note o leitor que não me utilizo do termo da moda: regime civil-militar. Até aceito que o golpe tenha sido “civil-militar”, mas em minha opinião o regime foi, fundamentalmente, militar. O que não implica desconhecer o fato que muitos segmentos civis foram seus sócios beneficiários, seus colaboradores centrais ou seus simpatizantes difusos. Os tecnocratas e magistrados conservadores foram fundamentais para dotar o regime de expertise em números e leis, fundamentais para compreender a duração e a institucionalização da ditadura. O regime foi militar porque era centrado, desde 1964, na tutela de um general-presidente, escolhido pela caserna, sobre o sistema político como um todo. Era militar porque ministérios “civis” considerados estratégicos para o projeto de “desenvolvimento” e “integração nacional” – Energia, Interior, Transportes e Comunicações, e até Educação – foram regularmente ocupados por militares ou ex-militares com relações orgânicas nas Forças Armadas. Era militar porque a lógica de segurança pública, organizada para o combate à subversão, se militarizou, com efeitos que podemos verificar até hoje.

O regime militar brasileiro teve uma grande capacidade de combinar o autoritarismo institucional exercido pelos generais-presidentes à frente do Estado, com práticas de repressão policial direta, legais e ilegais, no controle das oposições armadas e desarmadas. Conseguiu mais ainda, pois os militares tutelaram a própria transição, o que inclui o governo José Sarney.  Portanto, o DNA do regime autoritário não pode ser reduzido aos “anos de chumbo” da tortura e dos desaparecimentos de opositores, nem à “Era AI-5”, como se o fatídico 13 de dezembro de 1968 não tivesse nada a ver com o fatídico 31 de março de 1964. Dentro do objetivo de varrer a elite reformista (e seus parentes rebeldes, os revolucionários) e controlar os movimentos sociais, blindando o Estado das “pressões distributivas”, como se dizia, o regime buscou ir além da truculência praticada pelo porão sinistro do DOI-CODI. Este deve ser visto dentro da lógica geral da política autoritária implantada em 1964, e não como seu subproduto indesejado e incontrolável. A autonomia do porão da tortura não significava que este fosse inacessível ao palácio do poder. Tanto é que quando o palácio quis, o porão foi se esvaziando, mesmo a contragosto. Tudo, portanto, dentro da hierarquia militar.

Em tempo: afirmar que entre 1964 e 1985 vivemos sob um determinado regime político, um regime militar, não significa desconhecer suas contradições. Nenhum regime político é completamente isento de conflitos internos, lutas pelo poder e inflexões institucionais. O regime militar implantado em 1964 teve capacidade de absorver estes movimentos e se manter como tal.

As três afirmações acima mereceriam mais argumentos diante do rico debate – acadêmico e ideológico  – que se anuncia nestes 50 anos do golpe. Ficam aqui apenas como provocações para que possamos ir além da compreensão daquele momento histórico crucial na sua chave puramente ideológica, como mera catástrofe ou pura nostalgia, dependendo da perspectiva.


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 Historiador, pesquisador do CNPq, professor no Departamento de História da USP, autor do livro “1964: história do regime militar brasileiro” (Editora Contexto, 2014)

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