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Brasil, São Bernardo do Campo, SP. 08/11/1982. Luiz Inácio Lula da Silva fotografado durante uma assembléia com os metalúrgicos da Ford. Durante as décadas de 70 e 80, Lula dedicou-se intensamente à atividade sindical, como presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e na criação do Partido dos Trabalhadores e da CUT (Central Única dos Trabalhadores). – Crédito:CLÓVIS CRANCHI SOBRINHO/ESTADÃO CONTEÚDO/AE/Codigo imagem:3831

O PT do Poder – Entrevista com José de Souza Martins – Revista Veja

O sociólogo que viu a ascensão de Lula de perto diz que o partido nunca foi de esquerda e que sua origem eclesiástica explica a dificuldade de seus dirigentes e militantes em aceitar a divergência política

Leonardo Coutinho – Páginas Amarelas da Revista Veja – Fev 2016

 

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O sociólogo José de Souza Martins, de 77 anos, é considerado a maior autoridade no estudo dos conflitos fundiários no Brasil. Na década de 70, ele foi pioneiro nas pesquisas sobre as frentes de colonização na Amazônia. Seus trabalhos atraíram a atenção da Igreja Católica, que apresentou suas pesquisas aos movimentos sociais. Como professor dos cursos promovidos pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), ele formou lideranças e as viu fundar o Partido dos Trabalhadores (PT), em 1980, e o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), quatro anos depois. Apesar da convivência com os dirigentes, Martins jamais fez parte dessas organizações. “Sou visceralmente contra esse negócio de intelectual militante. Ou é uma coisa ou outra. Se alguém quer fazer militância partidária, é melhor aposentar-se como intelectual, como fez Florestan Fernandes”, diz o sociólogo. Na semana passada, chegou às livrarias o seu 45° título: Do PT das Lutas Sociais ao PT do Poder (Editora Contexto), uma coletânea de textos produzidos nos últimos catorze anos, nos quais ele observa e analisa o desempenho e as transformações do partido. Professor aposentado da Universidade de São Paulo, Martins ocupou a Cátedra Simón Bolívar da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, pela qual passaram Celso Furtado e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

 

Por que o senhor afirma em seu livro que o PT é um partido conservador? O Partido dos Trabalhadores surgiu no ABC paulista como uma alternativa ao comunismo. Não que fosse ideologicamente contra os comunistas, mas nunca chegou a ser um partido de esquerda. Tratava-se, do ponto de vista formal, de um partido católico. O PT foi gestado desde os anos 50 pelo primeiro bispo de Santo André, Dom Jorge Marques de Oliveira, corno uma espécie de mediação conservadora para a luta operária. Dom Jorge me disse que os trabalhadores do ABC ficavam no Centro Operário Católico jogando pingue-pongue. Ele os incentivava a ir para a porta de fábrica. Dom Jorge inventou Lula, antes que Lula soubesse disso, ao criar as bases para o surgimento do PT.

Se o PT não é de esquerda, por que tende a demonizar tudo o que é divergente como sendo de direita? A explicação está, mais uma vez, na influência da Igreja. Isso vem do dualismo Deus e diabo, o bem e o mal. Como aprenderam a pensar a política em termos dicotômicos, os petistas têm, em grande parte, dificuldade para lidar com a diversidade. Para eles, se o PT é de esquerda e a esquerda é o PT, qualquer coisa que difira disso é direita. É uma bobagem quando falam que o PSDB é direita, por exemplo. O PSDB é tão social-democrata quanto o PT. A direita de que falam os petistas é urna invenção. Nós não temos direita e esquerda no Brasil. A maioria da população nem sabe o que é isso. Embora Lula seja mais aberto a ideias de fora, o partido é totalmente intolerante a qualquer ponto de vista que não seja o dele. Essa é a característica do PT.

O ex-presidente Lula, porém, é quem mais se vale do discurso do “eles contra nós”… Existem dois Lulas. Existe o Lula de extração popular, que tem uma compreensão da realidade do país muito maior do que a da maioria dos outros líderes políticos. E existe o Lula do poder. Este se utiliza dessa linguagem polarizada e dicotômica que considera fundamental para a ação política. Aliás, essa é a linguagem instrumental do PT no poder. Para Lula, a política é uma performance, um teatro. O discurso dicotômico é parte de sua forma de fazer política.

Os petistas dividiram o país? Lula e o PT acham que falam na perspectiva da luta de classes. Mas, para haver luta de classes, as classes teriam de existir. No mundo inteiro, elas estão submersas. As classes sociais não existem mais, de certo modo. No Brasil, a classe operária almeja o consumo, a educação. Não está lutando por bandeiras de classe social. As próprias elites, para recorrer a um termo muito usado pelo PT, estão divididas. O capital financeiro diz uma coisa. O capital industrial diz outra. Eles estão preocupados com sua existência imediata. Os operários, também. Não há urna estrutura de classes que sustente o discurso petista.

“O PT jamais deveria ter aspirado ao poder. Deveria ter se mantido na missão de fiscalizar, investigar e apontar falcatruas de toda ordem”

Qual é a consequência dessa tentativa de dividir a sociedade? Da política maniqueísta do PT surgem dois Brasis antagônicos. Os petistas construíram a ideia de que o povo brasileiro é separado por ricos e poderosos que desde sempre exploram o povo, de um lado, e por uma massa de pobres e oprimidos, de outro. Os opressores são todos aqueles que não são petistas. Trata-se de uma visão simplista do país. Prova disso é que muitos integrantes da elite, alguns dos quais estão entre os mais ricos do Brasil, são visceralmente ligados ao PT, como ficou comprovado nas investigações de corrupção na Petrobras.


JOSE_DE_SOUZA_MARTINS_2_1Por que o PT insiste nessa estratégia? 
Existem no mínimo três PTs, e não me refiro às suas facções organizadas internas. Existe o PT operário, que é o do Lula, o PT dos intelectuais, que vem de uma certa crítica ao Partido Comunista, e o PT popular, ligado às pastorais católicas. Quando Lula se tornou presidente, os grupos mais populares dentro do partido e também fora dele viram a sua vitória como um profetismo católico. Dom Tomás Balduíno, que foi fundador e presidente da Comissão Pastoral da Terra, dizia que o governo Fernando Henrique Cardoso não fazia a reforma agrária por falta de vontade política. Mas quando o PT chegou ao poder, em 2003, com a suposta vontade política, nada aconteceu.

O grande partido dos setores progressistas da Igreja não fez o esperado. A reforma agrária do PT é inferior até à que foi realizada no governo de José Sarney, em termos de quantidade e intensidade. Quero dizer com isso que não se trata de vontade política, mas de questões práticas. Embora a agricultura familiar seja responsável pela produção de grande parte dos produtos que alimentam o Brasil, como o feijão, quem traz dividendos para o pais é o agronegócio.

Qual foi o erro mais grave de estratégia cometido pelo PT? Antes de o PT chegar ao Planalto, havia uma expectativa de que seria o partido do povo no poder. Essa era uma utopia muito forte nos movimentos de base. Para ser um partido do povo, porém, o PT jamais deveria ter aspirado ao poder. Deveria ter se mantido na missão de fiscalizar, investigar e apontar falcatruas de toda ordem. Antes de conquistar os postos do Executivo, o PT definia que todo poder era corrupto. Só que ninguém chega ao poder fazendo de conta que não está no poder. Lula era mestre nisso. Descia o sarrafo no poder como se não tivesse nada a ver com ele.

Por que, apesar de todos os escândalos, ainda há quem se iluda com o PT utópico dos anos 80? Os protestos a favor do governo, ou contra quem o crítica, expressam o fato de que nenhuma outra legenda se organizou em padrões tão corporativos quanto o PT. A mentalidade corporativa dos petistas dá ao partido muita força de mobilização. Trata-se de uma lealdade quase religiosa. Está ruim, mas é o PT. Está ruim, mas sou corintiano. Está ruim, mas sou católico.

Como o senhor observou o mergulho do PT no lamaçal da corrupção? Muita gente dentro dos movimentos sociais e do PT cultivava a ideia de que era possível associar-se ao capitalismo para expropriá-lo. A intenção era unir-se a ele para comê-lo por dentro. Deu tudo errado. Acreditava-se na possibilidade de uma corrupção altruísta, a ideia de que práticas arraigadas como a propina dos 10% para ganhar uma concorrência estavam liberadas desde que o dinheiro voltasse para o partido. Mas era corrupção do mesmo jeito, e, corno já comprovou a Justiça, os desvios foram muito além do pretenso altruísmo.

Alguns dos principais dirigentes do partido foram presos por corrupção. Como Lula passou Incólume pelo escândalo do mensalão? Lula, por ser muito inteligente e hábil, sempre agiu de maneira a não parecer o responsável por aquilo que corria paralelamente ao gabinete presidencial. Certamente é o que acontece, em níveis distintos, em todos os governos. O presidente da República não tem controle total sobre o que fazem seus ministros. Essa estratégia ficou clara no caso do mensalão. Lula manteve-se à margem do escândalo. Observei algo semelhante nas pesquisas que realizei sobre a ocupação da Amazônia nos anos 70. Havia uma escala do mal.

As pessoas achavam que o primeiro responsável pela violência era o pistoleiro. Em segundo, vinha o administrador da fazenda, depois o dono. O governo era o último a ser responsabilizado. Lula foi beneficiado por essa mentalidade. Os brasileiros acreditavam que os outros políticos estavam abusando da confiança do presidente.

“Cultivava-se a ideia de que era possível associar-se ao capitalismo para expropriá-lo. A intenção era unir-se a ele para comê-lo por dentro. Deu tudo errado”

Como ex-presidente, Lula terá a mesma capacidade de manter-se imune aos casos de corrupção que estão sendo descobertos em sua órbita? Longe do poder, ele perdeu essas barreiras de proteção. Mas ainda se beneficia de seu imenso carisma junto à população.

Qual sua opinião sobre o processo de impeachment da presidente Dilma Roussef? Também existiu a possibilidade objetiva do impedimento de Lula em 2005. Ficou bastante claro que ele tinha medo de que isso ocorresse. Lula chegou a ficar politicamente paralisado durante vários dias. Ele estava convencido de que seu mandato havia terminado. Agora, estamos novamente discutindo a possibilidade de impedimento da presidente. O que vou dizer não significa que sou contra ou a favor do impeachment. Penso nas consequências históricas do processo. Se levarmos em conta que o sucessor de Dilma seria o Michel Temer, que também tem problemas, e que a sucessão de ambos passa por Eduardo Cunha, cujas pendengas com a Justiça são ainda maiores do que as dos outros dois, não vejo urna saída saudável para o Brasil.

Se todos tiverem de ser removidos até a convocação de um novo pleito, levaria tanto tempo que seria melhor esperar pelas eleições de 2018. A sociedade e os políticos lúcidos têm de mostrar que são capazes de administrar o país até a próxima eleição. Não devem pairar dúvidas em um processo tão sério como esse.

A oposição defende a cassação do registro do PT. Qual será o futuro do partido? O Brasil não sairá ganhando se conseguirem destruir o PT. Mas o país também não será beneficiado com a permanência deste PT aparelhável e instrumentalizável no poder. O PT tem de amadurecer e virar um partido moderno, o que não conseguiu ser até hoje. Não adianta dizer que o que aconteceu com o PT nos últimos anos é culpa da direita. É tudo culpa do próprio PT. Isso é o mais surpreendente. Não há inimigos atuando nos bastidores. Quem está destruindo o PT são os amigos do PT.

O PT do Poder – Entrevista com José de Souza Martins – Revista Veja(Clique na imagem para ampliar)

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