Publicado no jornal Valor Econômico [Caderno Eu& Fim de Semana], sexta-feira, 21 de setembro de 2007, p. 22-23.
Mais do que o mordomo que evoca momentos dos trinta anos em que serviu na casa da Gávea, da família Moreira Salles, Santiago é personagem dos bastidores de esplendor de uma época terminal da história da sociedade brasileira. Com mais de 80 anos de idade, evocou para a câmera de João Moreira Salles lembranças de uma vida que não foi sua, como é próprio daqueles cuja biografia se desenrola na coadjuvância do servir. Vivia para os outros, para a família do Senhor Embaixador, como chama o banqueiro Walther Moreira Salles, que foi embaixador em Washington por duas vezes e ministro do regime parlamentarista no governo Goulart. João Moreira Salles, em Santiago, fez um documentário sobre a épica da subjetividade no âmbito propriamente fictício de uma história pessoal, a dimensão imaginária sem a qual o viver se torna impossível.
Há situações sociais e algumas profissões em que o imaginário rege mais forte as relações sociais do que em outras. São aquelas de papéis e funções sociais precisos, quase teatrais, ou aquelas em que há momentos que devem ser socialmente teatrais. Nessas situações, quando o ator é ruim, o conjunto do desempenho é arruinado, a própria instituição em que se dá sai empobrecida na diminuição do seu simbolismo. Pessoas de diferentes condições sociais tem seu próprio aparato ficcional de referência, muito mais relativo ao que acham que a sociedade é do que àquilo que a sociedade efetivamente é.
Essas pessoas se revelam nesses acertos e deslizes, nesses encontros e desencontros entre o liturgicamente prescrito e o socialmente desempenhado. São esses encontros e desencontros que nos falam sobre a qualidade da socialização e da educação que aquela pessoa recebeu, sobre a qualidade do ajustamento de cada um e de todos às necessidades sociais e às funções sociais a que são chamadas a desempenhar. A sociedade não é um caos de improvisações. Ela é sobretudo a ordem dos desempenhos prescritos e das improvisações referidas a essa ordem subjacente na conduta de todos. Há improvisações desastrosas que transformam o drama em comédia, o sério em cômico. E, no extremo, há improvisações e repentes com estilo, arte e consciência, dos atores competentes, dos que expressam melhor do que ninguém o que uma sociedade é, dos que conservam e inovam ao mesmo tempo. Assim como há situações sociais documentais, as que melhor revelam o que uma sociedade é, há também pessoas documentais, aquelas cujo modo de ser, de pensar e de agir melhor documentam o que a sociedade é num determinado momento histórico, tanto por aquilo que tais pessoas tem e a sociedade parece não ter, quanto por aquilo que a sociedade nelas tem como manifestação limite do que é.
Santiago é uma refinada expressão dessa última situação. Certa noite, os patrões saíram para um compromisso social e autorizaram o mordomo a fechar as portas, apagar as luzes e recolher-se. Num certo momento, João Salles, ainda menino, ouviu música num salão da casa. Saiu de seu quarto e foi ver o que acontecia. Santiago, vestido com o fraque de servir nas grandes ocasiões, tocava piano. Surpreso, quis saber porque, naquela hora, estava vestido daquele jeito: “Porque é Beethoven, meu filho”.
É nesse sentido que a decisão de João Moreira Salles, de contar a história do mordomo de sua família, foi criativa e inspirada. Ele reconheceu, em primeiro plano, o rico e sofisticado imaginário do mordomo de sua casa, que o viu, e a seus irmãos, transformarem-se de crianças em adultos. O filme é um documentário, mas o mundo de Santiago é um mundo de ficção. Ele imagina a casa dos Moreira Salles como o Palácio Pitti, de Florença, e os atende com a deferência de um sofisticado servo palaciano do Renascimento, o que se expressava nos seus arranjos florais.
O mundo dos mordomos tem sido objeto de verdadeiras obras de arte do cinema, como esta de João Salles. É inevitável lembrar de Steve, em Vestígios do Dia, com a diferença enorme de que Steve não tinha a consciência histórica de Santiago. Steve é, literalmente, um prisioneiro da história, enquanto Santiago, mais do que prisioneiro, é um pesquisador e cronista da história das casas senhoriais de todo o mundo, da genealogia das pessoas gradas de todas as partes. No plano oposto, é inevitável lembrar do mordomo em The Servant, de Robin Maughan, que era sobrinho do escritor Somerset Maughan. Robin baseou-se na experiência real de sua vida, quando estudante na Universidade de Cambridge e membro de Trinity Hall. Um caso dramático em que seu mordomo, no College, resolve explorar sua dependência pessoal para dominar sua casa e dominá-lo, privando-o da deferência do tratamento assimétrico, destituindo-o, em conseqüência, da expressão litúrgica de sua condição de membro da nobreza.
Depois de alguns anos de indecisão quanto a fazer a narrativa fílmica do imaginário de Santiago, João Salles conseguiu, finalmente, dar forma e conclusão ao filme. Fez um documentário primoroso, não só pela extraordinária história do mordomo, argentino descendente de italianos do Piemonte, poliglota, homem culto, mas também porque deixou à mostra os andaimes de sua obra. Santiago, como João, na realização do filme, não consegue libertar-se da trama de regras de relacionamento social desnivelado, entre quem manda e quem obedece. É João Salles quem se dá conta dessa assimetria persistente. No entanto, Santiago é o sutil senhor das notas de rodapé do filme. Num momento, ao descrever sua rotina, diz com um sorriso levemente malicioso que era um verdadeiro escravo, mas não consegue esconder seu orgulho profissional de servir. Em dois ou três momentos, observa que as personagens de sua narrativa e de suas lembranças estão todas mortas. Desse modo, propõe-se não só como sobrevivente de uma história da vida privada. Propõe-se, também como mordomo da própria história, aquele que nas casas senhoriais apagava as velas e, em silêncio, fechava as portas, cuidadosamente, antes de recolher-se.
José de Souza Martins, um dos mais importantes cientistas sociais do Brasil. Professor titular aposentado de Sociologia e professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Pela Contexto, publicou os livros A sociabilidade do homem simples, Sociologia da fotografia e da imagem, Fronteira, O cativeiro da terra, A política do Brasil lúmpen e místico, A Sociologia como aventura, Uma Sociologia da vida cotidiana e Linchamentos.