Um Romance histórico sobre um estranho trio que se une para desvendar crimes no Brasil império.
Eu tinha 11 anos quando numa tarde quente de outubro decidi ser na vida um canalha. Foi uma espécie de revelação. Ganhei um bom dinheiro num jogo de cartas e esse triunfo matou em mim o garoto obediente de colarinho engomado e botinhas engraxadas e colocou em seu lugar um vigarista sem remorsos. Raspando com as mãos em concha o dinheiro das apostas, comecei ali a jornada que fez de mim exatamente quem eu queria ser.
O jogo foi no cemitério de Santana do Ouro Velho e aproveitávamos a sombra de um anjo de asas abertas esculpido em pedra-sabão. A mesa era um túmulo de mármore negro onde jazia um alfaiate, morto pelo irmão caçula com golpes de tesoura durante uma discussão sobre três metros de linho. Arriscávamos ali as nossas mesadas, e apostar aquelas moedas de cobre sobre o cadáver de um homem brutalmente assassinado tornava o jogo ainda mais excitante. E Deus sabe que vivíamos para a excitação. Éramos três garotos mimados, filhos de barões do café e traficantes de escravos, e sobre o mármore havia uma quantia considerável. Jogávamos o Voltarete, como todo mundo no Império. A ideia foi de Tomaz, um garoto ruivo de olhos azuis e enormes dentes amarelos que faziam você pensar em cavalos sempre que ele sorria. Era dois anos mais velho do que eu e o Imperador da Escola. Dava ordens, decretava leis, exigia tributos e impunha sentenças sem sofrer qualquer contestação. Sua liderança era mantida pelo medo, não tanto pela força física; não era o maior garoto da escola nem o mais violento, mas tinha um temperamento instável, imprevisível e perigosamente rebelde. Transgredia todas as regras sem medo dos adultos e era capaz de tirar do bolso do paletó novidades sempre excitantes: uma garrafinha de conhaque, um dedo arrancado de um escravo enforcado, uma
caixa de charutos.
Certa vez apareceu com uma pistola Simeon North 1819 escondida num saco de pano onde guardava a merenda. Para nosso jogo naquela tarde quente, ele havia surrupiado o baralho de um cocheiro e estava confiante de que poderia esvaziar os nossos bolsos. Já tinha destino certo para as nossas moedas e avisou que, para cumprir o que chamou de seus “compromissos”, jogaria sem misericórdia. Aos 13 anos era conhecido nos bordéis do Beco do Lampião como “Fagulha” e deixava por lá mais dinheiro do que a maioria dos homens da cidade. Afonso era o terceiro jogador, um menino da minha idade e um animalzinho doente e assustado. Tinha as palmas das mãos suadas até mesmo no inverno e recuperava a saúde na casa dos avós enquanto o pai fazia fortuna como um dos maiores traficantes de escravos do Rio de Janeiro.
Mais de meio século escorridos na ampulheta desde aquela tarde e ainda me lembro da expressão de Tomaz usando a máscara de dor que todo jogador conhece ao perceber que foi abandonado pela Fortuna, essa maldita deusa cega. Empilhei cuidadosamente minhas moedas sobre o mármore sentindo uma felicidade imensa, não tanto pelo dinheiro, mas por ver no rosto sardento e esperto de Tomaz aquela expressão de derrota. Era a primeira vez que eu o vencia. Até aquele dia eu estava feliz em ser o Primeiro-Ministro ou ao menos o seu súdito favorito, e, por isso, tive que me conter para não gargalhar ao vê-lo sacudindo a cabeça, alisando os cabelos e tentando sorrir para não demonstrar fraqueza. Afonso remexia os bolsos vazios sem
saber também como havia perdido tolamente uma fortuna. Eu tinha limpado os dois com uma sequência improvável de três voltaretes de respeito, a maior combinação de cartas do jogo.
Naquela tarde, aprendi o que todo jogador profissional é obrigado a saber: no carteado há sempre um tolo e um ladrão. Eu havia marcado com a unha do polegar o verso dos ases negros e assim não foi difícil controlar o jogo. Não queria só me divertir nem estava especialmente interessado em ganhar dinheiro. Em algum ponto
muito além da excitação pelas apostas nasceu em mim um poder maligno: eu queria ganhar tudo de todos. Foi esse clarão, essa revelação perversa que me cegou por mais de três décadas; o poder de enganar e humilhar, a satisfação de controlar na ponta dos dedos o destino de cada adversário, o domínio perfeito dos próprios nervos, a aventura de explorar o vasto território entre a matemática das probabilidades e o comportamento humano. Naquela tarde quente, trapaceando entre um anjo de pedra e o cadáver de um homem assassinado, roubando os meus melhores amigos de infância, decidi tornar-me na vida um canalha e abracei este destino com o fervor de quem aceita um sacramento e a gratidão de quem recebe uma graça.
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Max Velati trabalhou por duas décadas em Publicidade e Jornalismo. Como escritor, publicou obras juvenis de Filosofia e História e seus livros são adotados nos currículos escolares. De 2014 a 2018 foi chargista da Folha de S.Paulo, onde publicou mais de 400 charges sobre economia. Vive no interior de Minas Gerais, na região descrita neste livro, de onde trabalha na área editorial para clientes do Brasil e do exterior.